www.librevista.com nº 53, junio 2023

A estrutura nostálgica da escravidão no Rio de Janeiro:
sobre a dimensão performativa da violência

x Maria Claudia Coelho[1]

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Braai é um tipo de churrasco feito na África do Sul. É uma ocasião de comensalidade, convivialidade, confraternização.
Braai é também o nome dado pelo antropólogo Allen Feldman a um tipo de tortura praticado na África do Sul no período da insurreição contra o apartheid.
Essa associação choca. Choca, principalmente, por sua pertinência. E por isso ela é a inspiração para as reflexões que se seguem.

 

São Conrado

São Conrado é um bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro. Sua maior peculiaridade, talvez – e esse traço não é nem de longe irrelevante para a história que vamos contar e comentar aqui -, é a proximidade da convivência entre as elites e as camadas populares que ali ocorre.
O bairro é atravessado por uma via expressa que liga a Zona Sul da cidade à Barra da Tijuca, duas áreas residenciais de elite no Rio de Janeiro. De um lado dessa via expressa, há um conjunto de condomínios de luxo; do outro lado, a favela da Rocinha. Moradores da Zona Sul e da Barra que moram em uma área e trabalham na outra passam por ali duas vezes por dia.
Qualquer conflito que se dê na Rocinha pode provocar graves distúrbios no trânsito da cidade. Quando isso se dá, os transtornos causados à mobilidade das elites disputam o espaço no noticiário com as mortes, desaparecimentos e balas perdidas – vide a imensa atenção dada pela mídia a esses transtornos na Semana Santa de 2004, quando uma “guerra” de traficantes rivais fechou essa via expressa, impedindo assim que as elites do Rio fossem trabalhar e/ou voltar para casa.
São Conrado é, assim, um bairro que tem, desenhadas em sua geografia, as profundas clivagens raciais e de classe pelas quais o Rio de Janeiro é tão conhecido.
 
agressão em São Conrado, Rio de Janeiro

 

Em abril de 2023, o noticiário sobre a cidade foi tomado por uma cena de agressão ocorrida em uma calçada de São Conrado. Ali há uma plataforma de delivery na qual entregadores retiram as encomendas. A calçada é também trajeto de moradores de prédios vizinhos.
A cena que narro aqui, com base em matérias de jornais e em um vídeo de ampla circulação tem três personagens: uma entregadora, um entregador e uma moradora de São Conrado.
A moradora é branca e os dois entregadores são negros.
A moradora passeia pela calçada com seu cachorro, preso por uma coleira. A discussão tem início entre ela (Sandra) e a entregadora (Viviane). Sandra reclama da passagem de motos sobre a calçada, Viviane retruca que não usa moto. As duas trocam ameaças, Sandra coloca o dedo em riste, Viviane manda que abaixe o dedo, repetidamente. Sandra recorre ao argumento arquetípico dos conflitos interclasses no Brasil: “quem paga imposto sou eu”. As duas fazem ameaças recíprocas de agressão física. Max, o entregador, assiste à discussão sentado em um degrau próximo. Em um dado momento, Sandra e Viviane se atracam, com Viviane se agarrando às grades de uma loja fechada e Sandra mordendo sua perna. É só aí que Max tenta intervir, pedindo que não se agridam. Viviane sai correndo, Sandra corre atrás, depois retorna. Ao voltar, agride Max com um soco. Ele se esquiva, sem revidar. Ela grita: “não vai embora, não!”. Sandra vai até seu cachorro, solta a coleira e usa-a para desferir quatro golpes contra Max.
A cena “viralizou”, ocupou mídias e redes sociais. Entre as consequências concretas para Sandra (sempre de acordo com o noticiário), estão: a divulgação de diversas passagens anteriores pela polícia (por lesão corporal, por injúria e ameaça, por furto de energia e por fraude em licitação); a cassação do alvará de funcionamento da sua escola de vôlei de praia pela Prefeitura; o banimento do aplicativo de delivery Ifood: a revelação, feita por seu irmão, de que ela agredia fisicamente sua mãe; e o indiciamento por lesão corporal e injúria por preconceito. Para Viviane, sua prisão por conta de um mandado por tráfico de drogas datado de 2017. E para Max, uma bicicleta elétrica e uma motocicleta (presentes do Ifood); uma bolsa para estudar Direito (concedida pela Faculdade Américas); e cerca de R$ 240.000,00, obtidos em uma vaquinha virtual organizada pelo apresentador Luciano Huck e pelo ator João Vicente de Castro.
Essas são as principais (até agora) consequências concretas, com evidentes implicações contundentes para o futuro dos três personagens. Há ainda uma outra consequência, de natureza simbólica, que queremos abordar aqui. Mas antes vamos retroceder alguns anos e revisitar um outro episódio ocorrido no Rio de Janeiro.

 

Flamengo

Em fevereiro de 2014, um rapaz de 15 anos foi encontrado nu e preso a um poste por moradores do bairro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ele havia sido espancado por um grupo de motoqueiros. O objeto escolhido para prendê-lo ao poste foi uma tranca de bicicleta; a parte de seu corpo escolhida para receber a tranca foi o pescoço.
O rapaz é negro.
Segundo o noticiário da época, o rapaz seria um ladrão conhecido na região. A primeira notícia diz que ele foi espancado por “três homens mascarados em uma moto”, que em seguida o prenderam ao poste. A matéria relata também que Yvonne Bezerra de Mello (artista plástica conhecida por seu engajamento em ações sociais voltadas para moradores de rua, desde o episódio conhecido como “Chacina da Candelária” – o assassinato de oito menores, moradores de rua, por policiais no Centro do Rio de Janeiro em 1993), fora chamada pelo morador que encontrou o rapaz. Yvonne então chamara a polícia e o corpo de bombeiros para soltar o rapaz, que foi levado a um hospital, de onde fugiu em seguida.
Três dias depois, o noticiário nos conta que o rapaz se apresentou espontaneamente a um abrigo da Prefeitura. Em entrevista, diz que foram “trinta homens em quinze motos” que o espancaram. Diz também não ter medo de novas agressões, pois não pretende voltar às ruas. Em depoimento prestado na delegacia, lhe são mostradas fotos de 14 homens presos por agressão a moradores de rua na mesma região. O menino não reconhece nenhum deles.
O adolescente já tinha três passagens pela polícia por furto e roubo e já havia um mandado de busca e apreensão contra ele. A consequência concreta para o rapaz: foi levado para uma unidade de menores infratores.

 

Duas práticas do tempo da escravidão

Os dois episódios geraram intensos debates nas mídias e redes sociais. Em comum, uma associação: as comparações com práticas do tempo da escravidão.
No caso do adolescente amarrado pelo pescoço, a comparação surge em palavras e imagem em um texto publicado pela ONG “Justiça Global”. O texto é ilustrado por um desenho de vários escravos presos por gargalheiras a postes, e principia da seguinte maneira:
Jovem negro é espancado, tem a orelha cortada à faca, a roupa arrancada e é preso pelo pescoço a um poste, nu, em plena via pública. Seus algozes: três homens que chegaram de moto, mascarados e identificados pelo adolescente como ‘justiceiros’”.

A ocorrência parece extraída das páginas de um livro de história do Brasil relativas ao período da escravatura, ao relatar técnicas de punição aos escravos fugitivos (como a gargalheira ou a golilha), mas não o foi: ocorreu na noite da última sexta-feira, 31 de janeiro de 2014, na Avenida Rui Barbosa, no bairro do Flamengo, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.” (Justiça Global, 2014)
 
No caso do entregador agredido com a coleira, a comparação é feita já de saída pela própria vítima da agressão: 
Ela me tratou como se eu fosse escravo. Só que ela está esquecendo que o tempo da escravidão já acabou há muitos anos. E isso não pode acontecer. É inadmissível. Não tem como aceitar uma situação como essa” — disse Max Angelo dos Santos, um dos entregadores, ao RJ TV. (O Globo, 10/04/2023)

O mesmo jornal, dois depois, afirma que “há, inclusive, postagens com ilustrações que remetem a um escravo sendo chicoteado, em comparação ao que ela fez com o entregador de aplicativo no último domingo” (O Globo, 12/04/2023)
Temos, assim, dois casos de agressão na Zona Sul do Rio de Janeiro, em que os agredidos são negros e, em um dos casos, o agressor é (comprovadamente) branco. Ambos suscitam comentários que os associam, explicitamente, a práticas e instrumentos de punição escravagistas – a prisão com gargalheira e o espancamento com chibata.
As semelhanças são inegáveis e, por isso mesmo, sua denúncia e sua vinculação ao racismo de difícil questionamento.
As semelhanças são, por isso mesmo, também muito perturbadoras. Agressões a jovens negros com gargalheiras e chicotadas nas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro no século XXI?
Como assim?

 

Por que esses dois casos ganham tanto destaque midiático?

O Rio de Janeiro é, há pelo menos três décadas, mundialmente conhecido por seus altos índices de violência urbana. Entre suas múltiplas formas, está a violência policial, que vitima majoritariamente, como mostram amplamente as pesquisas, homens negros e pobres. Ou seja, homens como Max e o adolescente (o nome não é revelado na mídia por ser menor de idade).
Esse tipo de violência, contudo, vai muito além de lesões corporais, de maior ou menor gravidade, pois, com muita frequência, mata. E mata não só aleatoriamente (como no caso das balas perdidas, nem tão aleatórias assim por se concentrarem em áreas da cidade onde há maior concentração de jovens negros), mas deliberadamente, como no caso das abordagens policiais discricionárias, dos massacres em presídios, das chacinas, em uma lista exaustiva de escrever, ler, vivenciar, ouvir falar.
Por que, então, esses dois casos, em que o dano corporal infligido é consideravelmente menor, ganham tanto destaque midiático?
A pergunta em si pode ser incômoda, como se indagar o porquê da repercussão trouxesse embutida uma dúvida quanto à própria pertinência dessa repercussão. Assumir o risco de fazê-la tem, contudo, a intenção exatamente contrária: dar a devida atenção antropológica à reverberação social dessa agressão. Porque, se reverbera mais, não será por ter outros significados que vão muito além do dano físico infligido?

 

Violências

“Violência” é um conceito muito difícil. Em um plano muito rudimentar, podemos pensar em “violência” como imposição de danos físicos ao corpo do outro. Essa definição é, como tantos já demonstraram, absolutamente precária, pois desconsidera que, por um lado, nem todo dano físico imposto a alguém é vivenciado como violência; e, por outro, nem tudo o que se chama de “violência” envolve a imposição de danos físicos.
Exemplos de danos físicos que não são vivenciados como “violência”: castigos físicos com intenções pedagógicas, provações impostas em ritos iniciáticos ou práticas sexuais sadomasoquistas.
Exemplos de fenômenos referidos como “violências” que não envolvem danos físicos: agressões verbais humilhantes, formas variadas de assédio ou negação de acesso a direitos legalmente garantidos.
A associação entre fisicalidade e moralidade tensiona, assim, a classificação de um ato como “violento”, como defendem, em contextos diversos, autores como Luís Roberto Cardoso de Oliveira, Daniel Simião e Jack Katz.
Em outros contextos, como o ambiente escolar, “violência” é também um termo complexo e adjetivado: existiria a “violência escolar”, a “violência nas escolas” e a “violência das escolas”. Com ou sem preposição, ou qualquer que seja ela, é também polissêmico, integrando uma trama semântica que inclui outros fenômenos, tais como o bullying e a “indisciplina”.
E ainda: em um plano macro, “violência” se articula (ou se opõe) a fenômenos transformados em seus vizinhos em função das matrizes conceituais adotadas e/ou posicionamentos políticos nelas imiscuídos, como em sua associação à criminalidade ou ao poder e à autoridade.
“Violência” é, assim, um termo escorregadio, que escapa a uma definição unívoca. Em alguns contextos, como as escolas, “desliza” semanticamente entre fenômenos vizinhos. Pode envolver, mas nem sempre, a imposição de danos físicos ao corpo do outro. Ou, ao contrário, alguma forma de agressão moral, sem qualquer fisicalidade, pode ser suficiente para sua definição.
Mas isso ainda não é tudo. “Violência” oscila também entre dois planos epistemológicos, podendo ser ora conceito, ora categoria êmica. Diante disso tudo, talvez nos reste a definição proposta pelo pedagogo francês Éric Débarbieux: violência é “aquilo que eu considero como tal”.
Como se já não bastasse tanta complexidade, arriscarei aqui acrescentar mais um aspecto à discussão sobre o que é “violência”: sua dimensão performativa. Para exemplificar, podemos recorrer a simples observações do cotidiano (ao menos nos ambientes urbanos ocidentais contemporâneos...ou em parte deles, para evitar os riscos da generalização...e haja complexidade...): homens e mulheres brigam da mesma maneira?
Para começar, homens “brigam” (se “brigar” envolver agressões físicas) muito mais do que mulheres, o que dá às raras brigas físicas entre mulheres um tom um tanto espetacularizado. Mas, quando mulheres se engajam em atos de agressão física, em geral o fazem de forma muito diferente dos homens. Entre homens, socos e pontapés são as formas mais comuns de agressão. Já entre as mulheres, as maneiras mais comuns de agredir são puxar os cabelos e unhar.
Ressalvas “práticas” insossas à parte (“homens usam cabelos curtos, não dá para puxar” ou “mulheres têm unhas grandes, não conseguem fechar a mão para socar”), o que estou sugerindo é que, para além da dimensão física e da dimensão moral, a violência tem uma dimensão performativa. E reside nessa dimensão performativa o dano simbólico extraordinário que atos “menos graves”, do ponto de vista (r)estrito da fisicalidade, podem causar.
E é aqui que a tortura “braai” pode nos ajudar a pensar.

 

Violência performativa, tortura braai e nostalgia do apartheid

Estudando os procedimentos da Comissão da Verdade na África do Sul, o antropólogo Allen Feldman discute formas de tortura utilizadas contra ativistas que lutavam pelo fim do regime do apartheid. Uma característica dessas torturas era sua associação ao braai – um churrasco típico da África do Sul.
O braai surge, nessas cenas de tortura, de diversas maneiras (atenção: contém cenas fortes): o mesmo garfo usado para a carne é espetado nas costas do torturado; os corpos dos torturados são queimados enquanto os torturadores bebem cerveja; o torturado é encarregado de preparar o churrasco do qual depois seria vítima; e a vítima é pendurada, de cabeça para baixo, sobre uma fogueira. A tortura pode também integrar o ambiente recreativo do braai, acontecendo em um clima descontraído com consumo de álcool.
Entretanto, nem todos aqueles que militavam pelo fim do apartheid eram negros. Havia ativistas brancos que também eram torturados. Mas não em torno de um braai.
Temos, assim, uma clara associação entre relações raciais e formas de tortura. E essas formas de tortura não guardam qualquer relação com seu propósito pragmático político de obtenção de informações.
Por que, então, inventar a tortura braai? E por que utilizá-la exclusivamente contra os ativistas negros?
Para Feldman, a tortura braai é uma encenação, uma teatralização que permite dramatizar nostalgicamente práticas que, a partir dos anos 1970 e 1980, já não eram possíveis devido ao ambiente político insurgente contrário ao apartheid. Entendê-la como um teatro nostálgico responde, assim, às duas perguntas: porque aplicá-la – já que não tem qualquer eficácia particular do ponto de vista daqueles propósitos políticos – e porque submeter a ela somente os ativistas negros.
Subjacente à tortura braai estaria assim uma “nostalgia estrutural”, um anseio mnemônico por antigas hierarquias. Para Feldman, a tortura braai seria uma expressão da “estrutura nostálgica do apartheid”.

Esse conceito de “estrutura nostálgica” tem um tremendo potencial analítico do ponto de vista das Ciências Sociais. Ele nos permite estabelecer uma relação de articulação entre as dimensões individual e social de um ato. Pois é o indivíduo que escolhe agir; mas sua escolha corre por um trilho que lhe é social, histórica e culturalmente oferecido.
Sejamos claros: falar em dimensão social, aqui, não abre qualquer brecha para atenuantes individuais (e o próprio Feldman alerta para isso, ao comentar sobre os riscos da psicologização e/ou da medicalização das atitudes dos torturadores, com sua capacidade para obscurecer o racismo institucionalizado). A dimensão social explica, tão somente, aquilo a que me referi acima como a dimensão performativa da violência – por que agredir desta forma e não de qualquer outra.

Fisicalidade, moralidade, performatividade – três dimensões da violência. Seria a performatividade uma dimensão periférica, “menor”? Qual a sua relevância diante da contundência do dano físico, da eventual irreversibilidade da violência em sua fisicalidade, ou do sofrimento psíquico por vezes excruciante, de seus impactos possíveis sobre a identidade do sujeito, da violência em sua moralidade?

 

Para que serve olhar para a dimensão performativa da violência?

Mãe de entregador chicoteado levanta cabeça do filho após choro: 'você vai sair dessa'”.
Foi essa a manchete de uma matéria publicada mais de dez dias após o episódio recontado acima.
Mas sair exatamente do quê? Max foi depor como vítima e recebeu imenso apoio popular. Ganhou também presentes, bolsa de estudos e uma quantia considerável arrecadada em uma vaquinha para que pudesse comprar uma casa própria.
A resposta, creio, é evidente: sair da humilhação inimaginável de ter se sentido tratado como um escravo, de ter visto essas cenas publicizadas na mídia e nas redes sociais, de saber que seus filhos o viram ser agredido dessa forma. Curar a ferida que os golpes desferidos por Sandra, muito mais do que em suas costas, abriram em sua autoestima.
E o menino nu preso pelo pescoço a um poste? Olhemos a dimensão física do ato: se a intenção era imobilizá-lo para que não fugisse e fosse preso (já que era acusado de furtos e roubos), para que despi-lo? E por que prendê-lo ao poste pelo pescoço com uma tranca de bicicleta? Deixá-lo vestido e com as mãos amarradas por uma corda ao poste não provocaria o mesmo efeito de imobilizá-lo?
Transformar uma coleira de cachorro em chicote e uma tranca de bicicleta em gargalheira constituem, assim, a dimensão performativa da violência desses dois atos. São também físicos, evidentemente – porque machucam e imobilizam; e são morais, obviamente – porque ofendem e humilham.
Mas não ofendem, machucam, humilham e imobilizam de uma maneira qualquer. Agridem (e aqui englobo todos esses atos em um único termo) de uma maneira específica, que mobiliza o imaginário escravagista nos personagens e no público. E, sendo assim, não nos informa apenas sobre a moradora que chicoteou o entregador ou sobre os motoqueiros que agrilhoaram o adolescente.
Informa também sobre a permanência de uma “estrutura nostálgica” que atravessa a sociedade que produz personagens que escolhem agredir dessa forma (é preciso reiterar, e reiterar, para não nos esquecermos e para não dar margem a leituras equivocadas: se as ações individuais ganham expressão em um repertório coletivo, nem por isso deixam de ser individuais, fruto de opções e convicções pessoais, não sendo determinadas por esse repertório).

 

Com uma coleira de cachorro e uma tranca de bicicleta foi acionada uma “estrutura nostálgica da escravidão”

Escândalos de opinião pública podem ser entendidos como momentos rituais. E um ritual é, como dizia o antropólogo Clifford Geertz, “uma história que contamos para nós sobre nós mesmos”. Somos, assim, aqueles que lemos, discutimos, passamos adiante, também personagens dessa história cujo tema de fundo é quem fomos, quem somos e quem queremos ser.
Se as histórias de Max e Sandra, do menino e dos motoqueiros, ganharam espaço midiático e conquistaram a atenção da opinião pública, então discutir sua repercussão importa, porque por meio dela podemos saber um pouco mais sobre nós que nos interessamos em discuti-las.
Em suas múltiplas formas, a violência apertou aqui um gatilho que (muitos de nós) supúnhamos travado, acionando, em uma paráfrase do conceito de Allen Feldman, uma “estrutura nostálgica da escravidão”: uma forma, talvez mais do que estrutural, de racismo profundo, expresso por meio não só da fisicalidade e da moralidade, mas, principalmente, por meio da performatividade das agressões.║

 

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[1] Colaboradora da librevista. Seu ensaio A Espiral do Mundo: breve comentário sobre expectativas para o século XXI (https://www.librevista.com/la-espiral-del-mundo-x-maria-claudia-coelho-premio-librevista-de-ensayo-2021.html) ganhou o Prêmio librevista 2021. É doutora em Sociologia, mestre em Antropologia Social e graduada em História. É professora titular de Antropologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde leciona desde 1993.