www.librevista.com nº 58, mayo 2024

Prologo del libro inédito Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso)

x Luiz Eduardo Soares[1]

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À guisa de introdução: Onde estamos e como chegamos aqui[2]

                            Para Miriam Krenzinger, parceira e guia nessa jornada

Epígrafes:
Em 2013, levamos o ódio pra passear e foi lindo, a despeito de tudo. Hoje, jantamos em família, um pouco inquietos, porque intuímos o dragão na garagem -diligentemente o alimentamos com as sobras do dia e o sangue do futuro. Dormimos com um barulho desses.
(Postei no Facebook, em 14 de dezembro de 2020)

***

Leitura da carta histórica em defesa da democracia, no Largo de São Francisco, na USP[3] . Que bom! Fico feliz e choro como todo mundo. Todo mundo, digamos, civilizado. Afinal, um país não vive sem mitos -mas o que é um país?-  e os mitos se fazem de remissões reverentes a si mesmos, esculpidos em bronze no altar das tradições. Ante a majestade das Arcadas, a escumalha não vitupera contra o capitalismo -imperam os bons modos, enfim. Para exorcizar o mal maior, sacrificam-se as diferenças de classe. Para enxotar o fascismo, celebra-se a união entre capital e trabalho, etc. É isso mesmo, estou de pleno acordo: quem haveria de contestar a razão? Mas nem por isso nos eximimos de pensar. E pensar pra valer, visceralmente. Hoje, disputam a cena -e o poder de ordenar o caos de vislumbres e afetos- dois mitos: o mito das Arcadas -as Cartas do Largo de São Francisco, 1977 & 2022-  e o mito das ruínas; o passadista e o escatológico. O primeiro remete a antecedentes respeitáveis que fizeram história e se agarra às conquistas que construíram as cidades e seus labirintos -e nos trouxeram ao impasse, acumulando iniquidades. O segundo, fascista, promete ruínas, fogo e sangue. O primeiro fala às elites, evocando o povo. O segundo rosna e grasna, acena ao ódio aceso no braseiro da história, cutuca o ventre vazio do que os doutos chamam povo. Um dia, teremos de superar o dó de peito eloquente dos bacharéis e falar francamente, sem empostação de voz, sobre não sermos um país, sobre os limites do que chamamos democracia, sobre a pusilanimidade das instituições. Hoje, entretanto, hoje, todavia, hoje, porém, mais-uma-vez-hoje-contudo, dependemos da patriotada de fancaria para não sermos devorados por Leviatã. Sigamos juntos, então. Marchemos lado a lado com os homens ocos, apertemos as mãos geladas do burguês fidalgo, como se fóssemos imunes ao odor pútrido do cadáver engalanado. O que a conjuntura exige de nós não é coragem, mas um pouquinho de transigência com o patético. Já, já -não vai demorar muito, talvez nem mesmo um século- recuperaremos a compostura. Mas esqueçam tudo isso assim que terminarem de ler. Se me cobrarem por essa irresponsabilidade, negarei. Negarei sempre, sem piscar, sem hesitar. Negarei.
Nunca escrevi nada disso. Essas palavras não são minhas. Também sei transigir com a transigência ilimitada da alma plástica e flexível desta nação varonil. E viva o Brasil!
(Postei no Facebook, em 11 de agosto de 2022)

 

I.    
Um país flertando com a distopia

Em junho de 2013, um milhão de pessoas ocuparam a maior avenida do Rio de Janeiro, num clima de festa e revolta, erguendo pequenos cartazes individuais bem-humorados, repletos de indignação e ironia, bradando seus gritos de guerra e amor, e não era carnaval. Dirigentes esquerdistas da tradicional organização nacional dos estudantes caminhavam anônimos e atônitos, em meio à multidão, perguntando-se quem convocara, quem estava no comando, quem tinha aquele poder imenso. Quem, se não havia carro de som, bandeiras, palavras de ordem? Quem, se lá não estavam partidos e sindicatos? Não acreditavam que aquele mar de gente pudesse se mobilizar sem liderança, atendendo ao chamado espontâneo das redes sociais. O mesmo acontecia, por contágio, em quase todo o país. Estavam perdidos como as demais lideranças da esquerda e da direita, como o governo Dilma Roussef e os intelectuais ouvidos pela presidenta, cuja opinião predominante logo se fixou na tese convencional: “Só pode ser coisa da CIA, do NSA, do imperialismo, associados às forças reacionárias da burguesia brasileira”. Governos estaduais lançaram suas polícias na impossível e sangrenta missão repressiva, e o caldo entornou. As manifestações se multiplicaram. Quem esteve nas ruas constatou, entretanto, que as pautas e demandas eram plurais e contraditórias, havia grupos assumidamente direitistas, mas muitos outros identificados com agendas e valores de esquerda.

A única definição fiel à realidade era: Babel. Evidentemente, a CIA estava presente, mas quando não esteve? Entretanto, óbvio que não seria capaz de montar tamanho espetáculo. O desejo de mudança, à esquerda, também estava lá, animando sobretudo os mais jovens. Todas as correntes de opinião tomaram as ruas. E se todas as tendências estavam nas ruas, a questão política passava a ser: quem será capaz de canalizar tamanha energia disruptiva? A postura defensiva, paranoica e insensível do Partido dos Trabalhadores prenunciava que as esquerdas não saberiam lidar com aquele deslocamento de placas tectônicas da subjetividade coletiva. Não saberiam dialogar com aqueles desejos e afetos, nem dar curso àquela vontade de participação, àquela ânsia de protagonismo.

Nas ruas, só uma certeza era compartilhada por todos: a representação política e sua institucionalidade haviam colapsado; a sociedade se tornara complexa e dinâmica demais para o figurino envelhecido da democracia limitada ao voto e à escolha entre discursos cada vez mais parecidos e distantes da realidade cotidiana, sobretudo das grandes cidades, mal atendidas por serviços públicos deficientes, assoladas por desigualdades abissais, corrupção e violência, carência de moradia e transporte decente, saúde pública e saneamento precários.

Paradoxalmente, a sociedade despertava de sua aparente letargia porque o país havia melhorado muito, em quase todas as áreas, sobretudo nos governos do PT, desde 2003. Dezenas de milhões de pessoas foram integradas ao mercado de consumo, o desemprego quase desapareceu, o salário mínimo valorizou-se, trabalhadores tiveram acesso a crédito, o Brasil saiu do mapa da fome e políticas afirmativas abriram as portas das universidades públicas a negros e pobres. As iniciativas distributivas foram muito importantes, embora tímidas e absolutamente insuficientes, ante o racismo estrutural, a brutalidade do machismo patriarcal, as iniquidades aviltantes no acesso à Justiça, o encarceramento em massa da juventude favelada -na hipócrita guerra às drogas-, a descontrolada violência policial e as elevadas taxas de exploração do trabalho. Os críticos à esquerda desprezavam as políticas sociais por considerá-las concessões irrelevantes, face aos lucros crescentes do capital financeiro e do agro-negócio, mas as massas populares reconheciam os avanços como conquistas que transformavam seu cotidiano. Não por acaso, Lula concluiu seu segundo mandato presidencial, em 2010, com mais de 80% de aprovação.

A população foi às ruas, em 2013, porque se sentia potente para reivindicar o que passara a perceber como seus direitos. Queria mais, queria ir além, agora que compreendera que seria possível e que era legítimo pleitear mais. A massa popular e as camadas médias baixas, tratadas pela primeira vez como cidadãs, passavam a agir como cidadãs, protagonistas da história de seu país. A classe média sentia que havia espaço para cobrar serviços públicos dignos em troca dos impostos que pagava. Em meio ao rumor da multidão, também rugiam vozes fascistas e racistas, que rejeitavam políticas afirmativas e valores igualitários. Havia também o rancor reacionário dos recalcados e ressentidos.

Desde o começo dos anos 1990, a religiosidade popular neopentecostal se expandia, celeremente, difundindo a teologia da prosperidade, que prometia benefícios nesse mundo, nessa vida. Os tempos de Lula e a maior parte do primeiro mandato de Dilma confirmavam as profecias otimistas, a prosperidade era real, fortalecendo os vínculos das camadas mais pobres com a nova religiosidade e suas igrejas, cujos líderes viriam a se tornar, na sequência, majoritariamente, portavozes do ultra-conservadorismo. Para dizê-lo em sociologuês: o êxito dos governos do PT ofereceu estruturas de plausibilidade ao discurso neopentecostal, tornou verossímil a teologia da prosperidade. Em paralelo, a ascensão social, mesmo limitada, abria horizontes, elevava expectativas, estimulava o endividamento e ampliava ambições. Tais condições fariam com que uma eventual crise econômica, além de dramática, se convertesse numa decepção em larga escala, numa dolorosa e deprimente reversão de expectativas, que seria vivida pelo povo trabalhador, e mesmo pelas camadas médias, como traição. E a crise chegou, lançando o segundo governo Dilma, em 2015, no abismo da impopularidade, de que se aproveitaram os abutres, sempre atentos à oportunidade de enfiarem guela abaixo da sociedade a agenda neoliberal: austeridade, ajuste fiscal, privatizações, supressão de direitos, desemprego para controlar as massas e depreciar salários, retração do Estado e transferência de renda para as elites.

A oposição liberal-conservadora identificou na crise instalada a grande oportunidade para golpear o governo -com um impeachment fundado em crime de responsabilidade inexistente-, isolar o PT, os movimentos sociais progressistas, as organizações dos trabalhadores, e implantar uma agenda neoliberal selvagem, devastando direitos e conquistas sociais, consagradas na Constituição de 1988, que coroara a transição da ditadura para a democracia. Dilma foi substituída pelo vice-presidente Temer e a agenda regressiva começou a ser implementada. Nada disso teria sido possível, entretanto, não fosse a operação de lawfare articulada pelas elites econômicas com as maiores empresas de comunicação brasileiras, segmentos do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal, de unidades de inteligência norteamericanas e do meio político. A operação se chamou Lava-Jato.

Essa articulação ofereceu a linguagem e a narrativa capazes de canalizar e dirigir a energia desprendida em 2013, marginalizando a parcela inassimilável, resistente a tal captura. A fábula contada, diariamente, a milhões de leitores, ouvintes, internautas e telespectadores era a seguinte: a sociedade foi dominada pelo Estado -composto de parasitas corruptos- que vampiriza seu esforço e drena os frutos de seu trabalho. A tarefa dos “homens de bem”, portanto, deveria ser apoiar os Torquemadas da Nova Inquisição, que travam a guerra santa para libertar a sociedade, por meio de um higienismo anti- político, uma faxina moral, exorcizando a corrupção. Note-se que a mensagem acaba sendo: o Estado e seus tripulantes (políticos, funcionários, burocratas) são a fonte do mal e se expressam sob a forma de taxas, impostos e normas que regulam práticas econômicas e relações de trabalho, obstam a liberdade e o fluxo das energias produtivas. Ao conjunto de agentes, leis e instituições dá-se o nome de “O Sistema”. A contrapartida da crítica ao sistema é clara: se o mercado for entregue a si mesmo, libertado do fardo de impostos e regulações, a riqueza virá em abundância, recompensando a todos, de acordo com os respectivos méritos. Eis o neoliberalismo moralmente legitimado e compatibilizado com a meritocracia e os valores da teologia da prosperidade.

Os primeiros passos das ações judiciais anti-corrupção pareciam corajosas e bem-intencionadas, porque os criminosos de colarinho branco começavam a ser investigados e presos, pela primeira vez na história do Brasil. Todavia, não demoraram a surgir evidências de que os procedimentos legais e as garantias individuais estavam sendo atropelados. Tampouco escapava à atenção de qualquer observador atento e independente (mas a maioria estava longe de manter sua independência crítica) o significado dos vazamentos seletivos para a mídia, a focalização preferencial em políticos do PT e a destruição das maiores empreiteiras brasileiras, multinacionais de capital nacional, que empregavam centenas de milhares, competiam com os conglomerados estrangeiros e haviam desenvolvido reconhecida expertise técnica. Foi ficando cada vez mais claro que o objetivo era destruir segmentos da economia nacional, Lula, o PT, as esquerdas, os movimentos sociais e qualquer vestígio de resistência organizada à pauta neoliberal. A trama, finalmente, acabou desmascarada, quando hackers divulgaram os bastidores da operação, depois que Lula havia sido preso e impedido de concorrer em 2018 -observe-se que a 21 dias do primeiro turno, ele chegava aos 40% de intenções de voto e Bolsonaro tinha 22%. O juiz que perseguiu Lula e, às vésperas da eleição, divulgou delações premiadas contra Lula, delações que se mostrariam posteriormente insustentáveis, tornou-se ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Em 2021, Moro foi julgado parcial pelo Supremo Tribunal Federal e as condenações de Lula foram anuladas.

Jair Bolsonaro, deputado obscuro por 30 anos, que só atuava na defesa corporativista dos militares e era conhecido por seus pares como medíocre, ignorante, grosseiro, misógino, homofóbico e extremista, foi eleito presidente em 2018, defendendo a mesma agenda neoliberal que levara Temer ao poder, no golpe parlamentar de 2016. Na votação do impeachment de Dilma, na Câmara Federal, ele, Bolsonaro, se destacou por uma declaração de voto chocante, transmitida ao vivo pelas televisões a todo o país. Chamou de herói nacional o mais conhecido torturador da ditadura e completou: “o terror de Dilma Roussef”. Aquele coronel assassino havia torturado pesoalmente Dilma, durante a ditadura. Mas isso não era tudo. Sua campanha prometia uma revolução para destruir o Estado corrupto e os inimigos de Deus, da pátria e da família: comunistas, gays, feministas, ambientalistas, ativistas negros, militantes dos direitos humanos, lideranças das sociedades originárias e dos movimentos sociais. Em seu último discurso, dirigido, via celular, a dezenas de milhares de fãs, reunidos na avenida Paulista, em São Paulo, ameaçou opositores: “Vão para o exílio ou para a ‘ponta da praia’”, código usado pela ditadura militar (entre 1964 e 1985) para se referir às execuções de opositores do regime.

Aliado de Trump e Steve Bannon, herdeiro de bandeiras do Integralismo, o movimento fascista brasileiro (criado nos anos 1930 e ativo, mais ou menos ostensivamente, desde então), Bolsonaro, ao longo de seu governo, confrontou a Suprema Corte, sugerindo repetidas vezes que estaria na iminência de intervir se as decisões continuassem a limitar seu poder. Cooptou a maioria do Congresso, eleita no rastro do extremismo direitista, e buscou agradar as elites econômicas, encaminhando a agenda neoliberal, embora desde o início de seu mandato tenha enfrentado a oposição de parte da mídia comercial -que, entretanto, não deixou de aplaudir sua política econômica. Bolsonaro hostilizou, permanentemente, a mídia crítica, enquanto seu governo e segmentos do judiciário assumidamente bolsonaristas procuraram “criminalizar” líderes sociais, comunicadores e intelectuais. Enquanto presidente, Bolsonaro defendeu o legado da ditadura militar e não escondeu a intenção de, assim que fosse possível, desfechar um golpe contra as instituições democráticas que o estariam “impedindo de governar”. Com frequência, convocou sua militância fiel a manifestar-se nas ruas e mobilizou uma rede ampla, na internet, em torno do grito de guerra “ditadura militar com Bolsonaro”. Ao longo de seus quatro anos de governo, Bolsonaro desfez praticamente todas as regulamentações que visavam proteger as sociedades originárias e o meio ambiente, especialmente a Amazônia, aliou-se a garimpeiros e predadores da floresta, cancelou multas e punições. Suspendeu comissões que abriam os ministérios a alguma forma de participação da sociedade. Suprimiu ou reduziu, drasticamente, verbas e apoios a atividades culturais, artísticas, científicas e educacionais. Pressionou o Congresso para que aprovasse a “exclusão de ilicitude”, proposta pelo ex-juiz Moro, que impediria a punição a policiais violentos. Moro afastou-se do governo, ensaiou uma ruptura com o bolsonarismo, tentou candidatar-se à presidência, mas voltou a apoiar o antigo chefe nas eleições de 2022 contra Lula, e se elegeu senador.
 
Bolsonaro, que fora obrigado a deixar o Exército por envolvimento em planos obscuros de atos terroristas contra a redemocratização, em fins da década de 1970, afirmou na TV, em 1999, já deputado, que a ditadura matara pouco e que seu erro consistira em torturar e não matar. Considerava inviável o progresso do país sem que fossem mortos “uns 30 mil”, a começar pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Nos anos subsequentes, homenageou policiais condenados por execuções extra- judiciais e propôs a legalização das milícias, máfias criminosas compostas por policiais e ex-policiais, que se apresentam como “justiceiros” e se apropriam de parcelas dos ganhos gerados por todas as atividades econômicas das comunidades pobres sob seu domínio armado, inclusive o acesso a terras públicas. Já presidente, Bolsonaro flexibilizou o acesso às armas e vetou as medidas que viabilizavam o rastreamento de armas e munições. Seu filho, ainda hoje senador, manteve, em seu gabinete, quando deputado, familiares de milicianos.

Em 2020, esse percurso avassalador contra o Estado democrático de direito chocou-se contra o imprevisível: a pandemia. Poderia ser a chance de Bolsonaro assumir o papel de estadista, conclamar à superação do ódio, convocar o apoio da sociedade, cercar-se de cientistas especializados e coordenar, com estados e municípios, ações sanitárias e econômicas efetivas. Não foi o que aconteceu. O presidente avaliou a situação como uma oportunidade de radicalizar seu projeto golpista, intensificando as investidas contra as oposições. Definiu a pandemia, inicialmente, como farsa, mero espetáculo midiático, depois como fruto de uma conspiração chinesa contra ele, Trump e seus aliados, visando destruir o mundo cristão ocidental. Na sequência, na medida em que os números de infectados e mortos cresciam, se recusava a aceitar os dados, denunciava-os como superestimados e incentivava seus aliados a invadir hospitais e desmascarar a farsa. Negava-se a sequer considerar a hipótese de endossar as políticas que vários governadores e prefeitos adotavam, na linha do distanciamento social e da exigência do uso de máscaras. Passou a denunciar tais autoridades regionais e locais como ditadores e a ameaçar convocar o Exército para “libertar o povo”. Em reunião ministerial, em 22 de abril de 2020, cuja gravação foi posteriormente divulgada por determinação judicial, Bolsonaro afirmou que era preciso armar o povo para resistir aos poderes locais. Em inúmeras declarações públicas, o presidente atribuiu aos governadores de oposição a responsabilidade pela crise econômica, que já existia antes da pandemia e foi por ela potencializada.
 
Quando os efeitos da pandemia se tornaram dramáticos demais para serem ocultados, Bolsonaro aceitou distribuir auxílio emergencial aos mais pobres e, sempre minimizando o drama sanitário, passou a defender o uso preventivo de medicamentos rejeitados pela ciência. Apoiado por gabinete paralelo de acólitos, endossou a estratégia proposta pelos principais negacionistas: a “imunidade de rebanho”. As mortes seriam inevitáveis, mas morreriam os mais fracos. Tratava-se de projeto higienista, que não ousava dizer o próprio nome. Quando a contaminação se expandisse suficientemente, a pandemia cederia. Os mais fortes sobreviveriam. Recusou-se a contratar vacinas, ensaiou recusá-las, chegou a criticá-las e só cedeu à necessidade de adquiri-las quando a segunda onda já matara mais de duzentos mil brasileiros. A população mais afetada foi aquela vulnerabilizada pelas desigualdades raciais e sócio-econômicas.

Durante o governo Bolsonaro, o desemprego atingiu níveis sem precedentes; a fome voltou a se instalar no país; o Congresso nem sempre foi dócil ao presidente (embora mais de uma centena de pedidos de impeachment tenham sido descartados); Lula, inocentado pela Justiça, em 2021, voltou a liderar as pesquisas sobre intenções de voto em 2022; e o número de vítimas fatais da pandemia passaria de setecentos mil. Apesar deste cenário devastador, Bolsonaro se manteve eleitoralmente competitivo e seu governo continuou contando com o apoio de quase metade do eleitorado. O apoio foi expressivo, mas insuficiente para reelegê-lo. Por isso, Bolsonaro investiu em articulações com as Forças Armadas e as Polícias para a eventualidade de um golpe. Avisou que não aceitaria resultados fraudados, nas eleições de 2022, e que o sistema eleitoral brasileiro, com urnas eletrônicas, produziria fraudes. Denunciou ter sido vítima de fraude, na eleição de 2018, a qual teria vencido no primeiro turno, mas jamais apresentou qualquer prova que sustentasse qualquer das acusações. O sistema funciona há muitos anos e nunca houve sequer suspeita plausível de fraude. Bolsonaro exigiu que o Congresso mudasse o sistema e determinasse que os votos fossem impressos, o que abriria brechas para a guerra de impugnações, denúncias, tumultos e a inviabilização do processo. A desordem sempre foi a utopia de Bolsonaro, o caos seria prenúncio do golpe que preparou, dia após dia, mas não logrou desferir.

Em 31 de outubro de 2022, a vitória de Lula no segundo turno das eleições presidenciais deu-se por margem muito pequena, apenas 1,8%: 50,90% dos votos válidos contra 49,10% de Bolsonaro. A diferença foi de cerca de dois milhões e cem mil votos: 60.345.999 contra 58.206.354. Essa diferença não conferiu ao governo empossado em primeiro de janeiro de 2023 força suficiente para mudar o eixo da política econômica e até mesmo para desembaraçar-se da ameaça militar[4] , a qual, mesmo velada, pesa como a espada de Dâmocles sobre a cabeça do presidente -e de toda a nação. Pelo menos esta é a mensagem subjacente às posturas adotados pelo governo federal ao longo do primeiro ano de mandato. Não se trata de afirmar que a leitura do presidente sobre a correlação de forças está correta ou não, o que afirmo é que esta é a leitura com a qual ele opera -ou é o que podemos deduzir de seus atos. Concorde-se ou não com as decisões governamentais, motivos não faltam para tanta cautela, sobretudo quando consideramos não só a divisão eleitoral do país e o compromisso ostensivo e agressivo dos grupos mais poderosos de comunicação com a agenda neoliberal, mas também a composição do Congresso Nacional e o alinhamento à extrema direita dos governadores dos estados economicamente centrais -São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A situação é delicadíssima porque, sem mudar o eixo da política econômica e reverter a autonomia inconstitucional (auto-atribuída) das Forças Armadas (e das Polícias), além de avançar em outras frentes, dificilmente o presidente Lula conseguirá alterar a seu favor a correlação de forças, ampliando significativamente seu apoio popular.

O quadro desafiador nos reenvia à fratura social e à pergunta decisiva: como é possível que a extrema-direita, depois do desastroso governo Bolsonaro, mantenha tamanha popularidade, em votos, adesões e intensidade afetiva das identificações?[5] Intensidade que se manifesta pelo avesso, como ódio e repúdio, na percepção da imagem de Lula.
O núcleo de adeptos mais aguerridos e mobilizados, que se identificam afetiva e ideologicamente com o que se convencionou chamar bolsonarismo (cf. Soares, LE. Dentro da noite feroz; o fascismo no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2020), mostram-se insensíveis a argumentos “racionais”, indiferentes a evidências, isto é, a informações devidamente verificadas e a dados empíricos -aos fatos, portanto. Daí serem frequentemente tratados como irracionais e negacionistas. Não raro, analistas empregam conceitos como dissonância cognitiva, equivalente a uma inaptidão na apreensão da “realidade”. O problema dessas soluções interpretativas está na dificuldade de definir tanto racionalidade, quanto realidade.

Alguns intérpretes reduzem a explicação ao papel alienante das fakenews, que inundam os nichos ou bolhas de comunicação da ultra-direita. Supõem que, se os fiéis apoiadores tivessem acesso a informações verídicas, ruiria o amálgama bolsonarista. Amálgama formado por valores, afetos, visões de mundo e avaliações sobre as sucessivas conjunturas e seus protagonistas. Essa tese peca, a meu juíxo, por não compreender que não se trata apenas de informações mais ou menos confiáveis sobre fatos, mas de uma radical redefinição coletiva, em processo, do que sejam confiabilidade e realidade ou de como operam a confiança e a verossimilhança: crer é ser leal a um grupo e a um sistema mitológico em construção (que se cola -amalgama- a outros, magneticamente, devora e dissolve contradições, e assimila fragmentos de outros sistemas, metonimicamente, ao longo do caminho de sua construção). Para esses segmentos, a confiança de uma informação deriva de sua gramaticalidade -ou de sua adaptabilidade- a sistemas de relatos em parte especulares, tautológicos, mutuamente referidos, de elevada taxa de redundância (marcados por “viés de confirmação”), e em parte abertos à absorção de novos ingredientes, segundo filtros que combinam modos de empregar tecnologias de comunicação e rituais de consagração, horizontais e verticais, participativos e hierarquizados.

Nesse quadro, teorias da conspiração correspondem a movimentos de expansão de vocabulários, narrativas, dinâmicas identificatórias e reconhecimento de inimigos. Tais extensões, promovidas pela criatividade mitológica (e paranoica), flexibilizam o âmbito de abrangência semântica e de integração de novos personagens e eventos, recalibrando critérios de admissão ou de validação da gramaticalidade.

Gramaticalidade é a qualidade do que pode ser incluído. Não se visa cognitivamente distinguir erro e acerto, veracidade ou não, fidelidade ou não a um real anterior e independente, mas, performaticamente, separar o interior do exterior, o familiar e o alienígena. Visa-se também somar vozes para contar uma história tecida em conjunto, aberta a subtramas que prosperam ou decaem, repletas, as que frutificam, de suspense e emoção. A gramaticalidade não é uma propriedade lógica, abstrata, metafísica (embora busque radicar-se também nessa dimensão, como provam as elaborações de seus “intelectuais orgânicos”), mas sobretudo uma espécie de cadastramento que agrega e afasta, um ticket simbólico para a admissibilidade de discursos e para o ingresso de indivíduos nos grupos de whatsapp e na comunidade dos “patriotas”. A experiência do pertencimento será tão mais gratificante quão mais coeso for o grupo, o qual será tão mais coeso quão mais intenso for o antagonismo aos inimigos. Daí a tendência agonística e belicista das células que compõem a fratria bolsonarista, e daí seu impulso natural a realizar-se sob a forma de movimento. A mobilização não é uma possibilidade eventual, em circunstâncias excepcionais, mas o modo de realização plena de suas virtualidades.

A informação que circula no interior da órbita desse movimento extremista é verdadeira se chancelada por mediadores autorizados ou pelo meio coletivamente estimado -o grupo de whatsapp, por exemplo. Confiança ou credibilidade -suporte da verdade de um fato relatado, ou de uma informação, no mundo dos “patriotas”- é igual ao valor da relação social e política entre emissor e receptor, não efeito da qualidade que se possa atribuir ao procedimento cognitivo, no tribunal da consciência. Nada tem a ver com questões alusivas à objetividade da observação (de um repórter ou de uma testemunha dos fatos), muito menos à consistência epistemológica ou metodológica da perícia que examina “evidências”. Por isso, não creio que se sustentem as hipóteses interpretativas que aludem ao conceito dissonância cognitiva. É hora de retomar as hipóteses esboçadas com mais objetividade, ilustrando com exemplos as teses abstratas.

 

II.
A história ao alcance da mão, o fetiche do protagonismo digital e o garimpo libidinal da culpa

Veja como se dá a infiltração afetivo-cognitiva e a difusão contagiante do que poderia ser chamado imaginário retrátil do bolsonarismo, que se expande e retrai conforme as circunstâncias, amalgamando figuras dissonantes em sua nebulosa ideológica inconsistente, e parasitando fragmentos culturais dispersos. Homens e mulheres, jovens e idosos, em todas as partes do Brasil, manipulam celulares e acessam o aplicativo whatsapp, entre outros. Observe que a manualidade das operações se confunde com protagonismo e a comunicação de fakenews -e não apenas-, sussurrada ao pé do ouvido, nos áudios, ou escrita “só pra você”, envolve cada pessoa nas malhas do segredo e proporciona a experiência valiosa do pertencimento a um grupo exclusivo. Você é o escolhido, a escolhida, como não acreditar? A crença é um hábito mental, que se transfere do intelecto às mãos, aos gestos, às práticas, e que percorre o mesmo caminho em sentido contrário, o que é ainda mais fascinante: também vai dos gestos à consciência. Como dizia Pascal: “Ajoelha-te e acreditarás”. Hoje, não é preciso ajoelhar, basta abrir o whatsapp e descubrir que o compartilhamento com você da (suposta) informação lhe dará
a sensação de exclusividade -exclusividade o/a fará sentir-se escolhido(a)- e soará como segredo. Ter acesso ao segredo, àquilo que poucos sabem, pressupõe o pertencimento a um clube seleto (exclusivo), uma espécie de família extensa, envolvendo identificação (que implica reconhecimento, adesão, constância, fidelidade, confiança) e estimulando a reiteração do movimento: você repassará a mensagem e/ou abrirá de novo, mais tarde, o whatsapp. Você fará isso, ligando, conectando, abrindo, fechando, escrevendo, redirecionando, repassando mensagens. Você é parceiro, cúmplice, os outros confiam em você e você pagará essa confiança com lealdade. Nada disso se vincula a questões epistemológicas, que se refiram a métodos de verificação. A verdade aqui corresponde a acolhimento, valorização, reconhecimento. Se você é alçado à posição de sujeito (imaginariamente), há verdade aí, porque, sentindo-se potente (protagonista), você se liberta das subordinações que o humilham e oprimem. Ora, como você leu na Bíblia que “a verdade liberta”, você deduz que a comunicação virtual contém a verdade, porque o(a) faz sentir-se livre.

O que aconteceu em 2 de outubro e em 31 de outubro de 2022, assim como nos dias imediatamente anteriores, era previsível e reproduz, supõe-se que em escala ampliada, o que houve em 2018: uma descarga torrencial de fakenews e mensagens geradoras de adesão eleitoral a Bolsonaro e seus aliados. A tática é conhecida e tem sido aplicada em diferentes países pelos movimentos neofascistas. Requer financiamento vultoso e uma estrutura de comunicação de alcance gigantesco. A carga venenosa funciona como arma de destruição em massa, porque os efeitos se espalham velozmente, sem que haja tempo para respostas dos adversários, e provocam danos em um raio vastíssimo. No entanto, note que o abalo só é efetivo porque havia solo fértil, previamente adubado. A mensagem encontra estrutura de receptividade solidamente montada, fidelizada, conferindo plausibilidade aos conteúdos transmitidos. Eleitores e eleitoras se engajam na medida em que não se sentem meros receptores passivos mas, sim, imbuídos de uma missão: repassar a mensagem, transmitir “a palavra”, contaminar outros eleitores, gerar um tsunami pandêmico e votar.

Por outro lado, para que tudo funcione é preciso que haja o longo e paciente cultivo do terreno da comunicação, o que inclui desde a formação de grupos à proliferação de canais liderados por influenciadores bolsonaristas, testando e consolidando múltiplas dicções, repisando temas chave com vocabulário comum.[6] O imaginário tradicional conservador é reavivado e atualizado com focos variáveis, conforme as conjunturas. É indispensável que as mensagens do front, emitidas na véspera da batalha, sejam amparadas por estruturas de plausibilidade que lhes confiram verossimilhança e as façam circular em redes já enlaçadas por lealdade e confiança.

Em contraponto ao pertencimento e à identificação, afetos opostos e negativos vão sendo aquecidos em fogo brando para que, uma vez lançada a maldição sobre o inimigo, a crítica se transforme em repulsa e ódio. A intensidade anima o engajamento e fortalece a hostilidade aos competidores.

A estética, a gramática e a apologia do ódio e do aniquilamento ganharam espaço e tornaram possível a montagem da máquina de guerra comunicacional bolsonarista, que é também política libidinal, porque se endereça, como veremos adiante, à demanda por restauração da ordem ontológica. Esses ingredientes estéticos e afetivos, sem cuja maturação anterior o bolsonarismo não teria encontrado tração na sociedade, ajudam a compreender a captura das energias babélicas de 2013 pelo neofascismo (energias que eram plurais e contraditórias na origem), o golpe parlamentar de 2016, os movimentos da guerra híbrida que aproximaram militares e a ultradireita transnacional, a Lava-Jato como operação midiático-jurídico-política, destinada a desaparelhar setores do capital nacional e a excluir Lula das eleições de 2018, e finalmente o triunfo do bolsonarismo.

Conforme procurei demonstrar em meu livro Dentro da noite feroz; o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020), a passagem da compaixão à indiferença e daí ao ódio, como afetos dominantes (do ponto de vista da ética pública) em distintos momentos estruturais de nossa história, conta como se deu o trânsito sinuoso e convulsivo da hierarquia autoritária católica, engatada ao capitalismo nascente -em cujo âmbito prevaleciam o favor, o patrimonialismo, o compadrio e a escravidão-, ao neoliberalismo ultra- individualista globalizado sob hegemonia do capital financeiro. No mesmo livro, trabalhei as relações do bolsonarismo com a morte, que constituem objeto importante do qual não tratarei aqui, porque nos levaria muito longe. Essencial, no momento, é tentar entender a postura alucinatória implicada no remédio tóxico (gerador de traumas que voltarão no futuro a assombrar a sociedade brasileira) que o bolsonarismo oferece aos brasileiros para curá-los da culpa, a culpa tremenda que sentem não só pelos desejos inconfessáveis, mas por conviverem com o escândalo normalizado. O escândalo das desigualdades abissais, da violência racista, das violações de mulheres, da devastação ambiental meticulosamente executada. A culpa profunda leva à prostração, à apatia (a depressão se alastra), e quão mais impotente o sujeito se sente, mais culpado por negar- se a ver as abjeções e reconhecê-las como tais, ante seu testemunho inerte. O discurso liberal da meritocracia não basta, é hipócrita demais, contrasta demais com a empiria observável no dia a dia. O individualismo convencional brasileiro tampouco funciona, porque é permeável a ideias e afetos coletivistas: fraternidade, solidariedade, corresponsabilidade.

Restou a Bolsonaro o garimpo libidinal que extrai ouro do nariz dos mortos e suscita prazer. Vejamos: o imaginário alucinatório do capitalismo neoliberal que Bolsonaro encampa e aprofunda precisa levar o culto à indiferença (a ode ao “foda-se”) às últimas consequências. Precisa assentar em bases firmes seu projeto e, portanto, necessita de mais do que o mero apaziguamento que a indiferença proporciona. É nesse ponto que o messias da revolução destrutiva propõe a solução óbvia, o ovo de Colombo: sugere a metamorfose da voz interior que causa culpa -o senso autocrítico de moralidade- em acusação pública contra aqueles que tenderiam a suscitar empatia e seriam alvos da compaixão. Bolsonaro interpela as vítimas e convoca os culpados a exorcizar até a última gota seu senso de responsabilidade e empatia, passando ao ato. Eis em suma o sentido de sua performance: convoca sua militância a acusar as vítimas -vitimismo-, os pobres, ultrajados e explorados -coitadismo-, as mulheres violadas -mimimi. Bolsonaro decreta, assim, a alforria a quem ainda se deixava prender ao sentimento de corresponsabilidade. Sentimento, aliás, do qual a culpa representa uma versão psiquicamente mal elaborada, autopunitiva, cujo efeito acaba sendo paradoxal: a dissolução do amor e da empatia no ácido da ira e da vingança.

Enquanto as esquerdas vacilavam, com seu punitivismo estúpido e demagógico, em reconhecer que responsabilidade é uma virtude e um dever, dos quais a culpa constitui um espelho negativo -espelho que adoece e inibe seu portador, e expele o chamado à ação-, enquanto isso, Bolsonaro se apropriava dessa problemática central para a organização da sociabilidade e dos afetos, soltando as amarras da matilha de cães selvagens. A matilha feroz é o espírito humano, instalado no corpo impotente, interpelado pela fome, a injustiça, o desejo de sentir-se livre e a vontade de poder. O militante modelar está livre para odiar, humilhar e aniquilar os que refletem sua própria impotência. Impotência que ele amargava pelo viés neurótico da culpa. Culpa que agora o eleitor bolsonarista pode purgar, culpando a vítima pela violência, o miserável pela miséria. Uma elaboração saudável teria de integrar a culpa, convertendo-a em senso de responsabilidade e disposição para agir politicamente em direção à solidariedade.

Voltemos ainda uma vez às eleições e ao exame de algumas condições que, embora negligenciadas, talvez tenham sido relevantes para o êxito do candidato da extrema direita neofascista. Assinale-se que na campanha eleitoral de 2018, ganhou tração o movimento bolsonarista que buscamos compreender.

Nos dramas sociais, como são as eleições, estão presentes as mais diversas dimensões que compõem a vida em sociedade. Por esse motivo, faz todo sentido refletir sobre as conexões entre interesses e voto, renda e voto, classes sociais e voto. Assim como entre faixas etárias, escolaridade, adesões religiosas, regiões, raça ou cor, gênero e voto. Em outras palavras, todas essas relações merecem ser objeto de reflexão e pesquisa. Todavia, é evidente que isso não basta. Não bastou e não bastará. Por este motivo, a contribuição que pretendo oferecer -e o tenho feito, insistentemente -desde pelo menos 2017- põe em circulação hipóteses relativas à relevância de outras dimensões, entre elas, e em primeiro lugar, a demanda, amplamente ativa na sociedade, pela restauração da mais profunda e matricial das ordens, aquela que, abalada, provoca insegurança mais intensa e dramática do que a violência e a criminalidade. Uma ordem que não se promove com polícia e justiça criminal. Refiro-me à ordem no plano matricial -que é imaginária mas vivida como o pressusposto mais essencialmente real da existência-, plano que delimita e suporta o próprio ser de cada sujeito humano, define seu destino e lhe dá sentido, plano que merece ser denominado “ontológico”.

 

III.
A restauração da ordem ontológica

A tempestade feminista varreu certezas, referências e toda a arquitetura patriarcal e falocêntrica que organizava homens, mulheres, adolescentes e crianças em torno de papéis consolidados e funções padronizadas -sociais, econômicas, culturais e reprodutivas-, cada qual com suas contrapartidas psíquicas, isto é, afetivas e libidinais. A luta das mulheres por igualdade não se esgotou nem se esgota na paridade salarial, na redistribuição do trabalho doméstico, no direito ao voto, à representação e à propriedade. Avança no campo das autoimagens e das imagens sociais, reconfigura a sexualidade, reestrutura os vínculos entre sexo e moralidade, erotismo e reprodução, amplia o espectro semântico e político da liberdade e dos direitos, e reivindica o controle do próprio corpo.
 
O capitalismo e a ideologia liberal demonstraram plasticidade suficiente para absorver parte substancial das energias precipitadas pelos movimentos das mulheres, mas sinalizaram dificuldades para conviver com as interseções entre as mobilizações feministas e as lutas antirracistas, que trouxeram consigo as contradições entre as classes (as quais já atrevassavam as pautas e as linguagens feministas). As tensões se intensificaram quando, a essa pororoca de protestos, reivindicações e intervenções cívicas, culturais e políticas, se somaram, progressivamente, as lutas LGBTQIA+. Deu- se um nó no trânsito da política tradicional pelas novas esquinas da história. A retórica, o horizonte do possível, o princípio de realidade e os procedimentos da política liberal institucionalizada foram abalroados por novos projetos e desejos e subvertidos pela babel (ininteligível e chocante às sensibilidades convencionais) de aspirações, estéticas e modalidades organizativas. Não se tratava do mesmo indivíduo, o cidadão racional da República democrática, que simplesmente passava a acumular alguns itens originais à sua agenda, assim como o empresário liberal acrescenta papéis à sua carteira de negócios, ao seu portfolio. A praça ficou grande demais, agitada demais, febril e incandescente demais, imprevisível e incompreensível demais para caber no mercado.

O liberalismo, radicalizado por seu rebento monstruoso, o neoliberalismo (que não pervertia a origem, apenas a revelava com mais crueza), não demorou a desmascarar sua natureza excludente, autoritária e brutal, desde os primeiros confrontos com sindicatos de trabalhadores (lembremo-nos da resposta de Thatcher aos mineiros e das razões pelas quais o Chile de Pinochet sediou o primeiro grande experimento neoliberal). Pois o desafio seria bem mais complexo do que as greves na Inglaterra prenunciavam. O fim da guerra fria não implicaria o desaquecimento das tensões sociais, até porque as desigualdades, os processos neocoloniais, as manifestações crescentes e contínuas do aquecimento global e os antigos mecanismos repressivos se expandiam, suscitando novas formas de consciência e distintas modalidades de resistência. Entretanto, e essa é a beleza da história (beleza tantas vezes trágica e sangrenta), por mais que a primeira ministra britânica decretasse o fim da sociedade e a primazia absoluta do indivíduo, inaugurando a era da precariedade generalizada -salvo para os salvos do dilúvio, evidentemente- e debilitando as
organizações populares e as concepções coletivistas, novas individualidades eram gestadas, envolvendo revoltas políticas de novo tipo, a invenção de comunidades experimentais e a emergência de inesperadas solidariedades transversais.

Essa energização recíproca -apesar de contradições internas aos múltiplos movimentos e, em parte, graças a elas- alcançou patamares surpreendentes com a disseminação das redes sociais e das tecnologias digitais de comunicação. Os tipos de individualidade surgiram, paradoxalmente, da exacerbação do individualismo neoliberal, mas transcenderam os limites do figurino moldado pela economia, na medida em que precisavam, para se viabilizar, de ações coletivas e acolhimento mútuo, que apontavam para projetos políticos socializantes e radicalmente democráticos. Essas individualidades originais que transbordavam o capitalismo neoliberal (e foram se constituindo em meio a saltos e recuos, encontros e desencontros, graças às mobilizações feministas e LGBTQIA+) exerciam uma estética de si que pressupunha inusitado campo de liberdade e apontava para alianças não apenas táticas com movimentos antirracistas e aqueles assentados na luta de classes: à sua coragem libertária devemos a conquista extraordinária que correspondeu à dissociação entre corpo, gênero e sexualidade. Assim, a anatomia deixou de ser um destino; o gênero se rendeu à vontade política e às sinuosidades do desejo, explodindo a camisa de força das classificações e suas canalizações institucionais, familiares e sociais; e o sexo abriu-se à arte indeterminada das experimentações.

Por óbvio, não estamos diante do velho personagem: o indivíduo-consumidor de mercadorias, que aluga a força de trabalho, ou ao agente utilitarista, que calcula. Estamos frente a frente com a persona gestada por um complexo processo político consciente e inconsciente, em (re)construção permanente, que evoca a linguagem da solidariedade, da liberdade, da participação e de um protagonismo cívico-político inusitado. Não se trata de fantoche produzido pelo neoliberalismo, nem seu apelo político radical à individualidade corresponde ao que se convencionou denominar individualismo. Como procuro demonstrar em O Brasil e seu duplo (SP: Todavia, 2019),[7] gestação das novas individualidades significa, do ponto de vista do capital, uma anomalia, justamente porque realiza uma de suas tantas contradições estruturais. Isso não significa, por exemplo, que todas as mulheres sejam revolucionárias, até porque o machismo não faz a cabeça somente dos homens. Mas não é coincidência que os fascistas se oponham tão ferozmente ao que denominam “ideologia de gênero”. Eles não odeiam as mulheres, individualmente, mas o feminino como signo de um mundo que ignoram e temem, um mundo que poderia vir a ser hostil ao autoritarismo falocêntrico e à exploração mercantil. Eles odeiam o potencial de construção política do feminino. Eles odeiam a população LGBTQIA+ porque temem a subversão dos papéis tradicionais, promovida por quem ousa privilegiar a liberdade fluente do próprio desejo e experimentar a indisciplina no jogo das identidades. Às vezes, na esquerda, nós escorregamos, seja por negligenciar como
“identitárias” as lutas que não compreendemos, seja por compartilhar preconceitos patriarcais.

E aqui chegamos ao ponto que importa diretamente à análise do bolsonarismo e das lutas políticas em curso no Brasil. Não apenas os fascistas estão desnorteados ante o tensionamento dos arquétipos. O macho está desnorteado -o que inclui as mulheres que assimilaram a estrutura mental do patriarcado. E não só no Brasil, mas, agora, é do Brasil que se trata. O fascismo bolsonarista é (entre muitas outras coisas) uma das respostas ao desespero dos que sentem o chão tremer sob os pés e, sem norte, se agarram ao último fio de esperança que os ligue à ilusão de que poderiam ver restaurada a ordem ontológica subvertida. Bolsonaro endereça seu discurso, seus atos, sua performance aos machos em agonia, homens e mulheres que se veem na beira do abismo da própria insegurança. Se o ser é movimento, se corpo, gênero e sexo não formam uma unidade inquebrantável, sancionada por Deus e pela natureza para todo o sempre, se não há uma essência substantiva que ancore aquilo que cada um(a) é, no âmago de seu ser, orquestrando seus afetos fundamentais, se a família patriarcal não é a única forma sadia e sagrada de união, como cada um e cada uma pode se reassegurar contra a correnteza de incertezas? Insegurança e medo clamam por ajuda, apoio, resposta. Bolsonaro se dirige a esse medo matricial com performances que evocam tanto o tio do churrasco, racista, homofóbico e misógino, quanto o Deus de Primeiro Testamento, um deus de opereta, messias de fancaria, mas que faz sentido para o homem sem norte. A coreografia com a arminha é a cena grotesca e canhestra dessa mensagem: eis-me aqui, o macho grosseiro, tosco, rude, sou pura violência vingadora, vim expulsar o Outro que encarna o mal e as perversões, que é a anti-natureza -o anti-Cristo. Quem protege a natureza sou eu, ele dirá, a verdadeira Amazônia é o falo inflamado pelo poder que impõe a ordem definitiva. Bolsonaro é o esboço de tirano imbrochável, sem amarras, que não conciliará com a alteridade. O Outro será expurgado de nossa pátria. Ela é o solo comum sobre o qual se sobreporão novamente (tratar-se-ia de repetição, de recuperação do passado idealizado) o mandamento divino atemporal, a essência do homem e da mulher, e a natureza humana imutável. O Outro e a história serão banidos. E todos estarão armados para essa guerra terminal. Bolsonaro inscreveu na política a promessa de restauração da ordem ontológica fraturada pelos movimentos emancipadores e libertários. Essa é a segurança que de fato importa, a outra -onde policiais caçam bandidos- é menor e vicária.

É possível viver das mais diversas formas o desmonte progressivo do poder falocêntrico. Por exemplo: aderindo ao desmonte; recalcando o incômodo perturbador com mais ou menos sucesso (isto é, formando neuroses ou psicoses); buscando ajuda em terapias; aproveitando sua adesão religiosa para elaborar a resistência nos termos simbólicos de cosmologias teológicas; ou passando ao ato com a violência de linchamentos ou de ataques individuais, abusos e violações, disseminando preconceitos e discursos de ódio, e/ou vinculando-se ao bolsonarismo, ao integralismo e a outros movimentos neofascistas.

A hierarquia de classes e o racismo estrutural também se articularam, historicamente, com os pilares arquetípicos da família patriarcal. Somos uma sociedade forjada na escravidão. Não à toa a Casa Grande é a síntese do poder no Brasil. Portanto, a pirâmide toda parece balançar quando o masculino e o feminino se desgarram de sua ancoragem supostamente natural e não apenas quando os trabalhadores se organizam e os movimentos antirracistas se afirmam. O imaginário da Casa Grande, dominante na elite branca, sempre foi retrátil: contrai-se feito sanfona quando se esgarçam direitos e liberdades, na esteira das lutas sociais, mas permanece armado sobre a base que lhe dá tração, mantendo-se pronto a estender-se a qualquer momento, encerrando sob a noite política os episódicos experimentos democráticos. Enquanto o terror ontológico que estremece o patriarcalismo alimentar a política neofascista, permaneceremos flertando com a distopia. O primeiro passo para desatar esse nó, que engata a angústia da impotência à mobilização extremista, é dar-lhe nome, reconhecer sua existência, seus significados profundos e sua importância histórica. E parar, de uma vez por todas, de desqualificar por “identitárias” as lutas da nova cidadania.║

 

Reseña y comentario del editor de librevista

Luiz Eduardo Soares es uno de los más importantes intelectuales brasileños. Es difícil resistir el impulso de reseñar su prólogo –tal vez sea prematuro sin disponer del libro– y deslizar aquí algunos comentarios primarios –algo de lo cual ya llegó al autor.
Es tan lento el intercambio de ideas, aún entre amigos. La edición digital debería promoverlo más, y no lo hace demasiado aunque disponga de todo el soporte técnico para hacerlo fácil…–es entonces un problema humano.  
Vamos a simular entonces que el autor hizo una exposición presencial y uno de los asistentes comentó sus dichos.
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Soares “niega” que haya escrito sobre una transigencia con lo patético, con hombres huecos, con el Brasil varonil. Lo soporta en el subconsciente, laxamente, con humor. Está y no está, el mito del sostén y el mito de la ruina conviven.

El autor está en debate con la izquierda más tradicional, esa que adjudicó las manifestaciones de junio del 2013 a la CIA, el imperialismo y conspiradores, sin entender, buscando quién había convocado a todo eso tan multitudinario, a toda esa energía. La izquierda gobernante no entendía cómo se movían “las placas tectónicas de la subjetividad colectiva” brasileña. Y mandó la represión.
Luego, el autor abordará las críticas positivistas cognitivas al bolsonarismo y al feminismo y movimientos ciudadanos por su “identitarismo”, desde fuentes similares.

Las conquistas distributivas de los gobiernos del PT se enfrentaron a la crisis que desembocó en el impeachment de Dilma Roussef. La energía del descontento la canalizó la derecha y extrema derecha. Luego siguió la operación Lava Jato, la condena y prisión de Lula. Con la proscripción de Lula, Bolsonaro llegó a la Presidencia.
La lista de “méritos” de Bolsonaro es larga.

Lula gana las elecciones siguientes por poco margen, que se mantiene hoy. Dice el autor que “la situación es delicadísima porque sin cambiar el eje de la política económica y revertir la autonomia inconstitucional (autoatribuída) de las Fuerzas Armadas y Policía, además de avanzar en otros frentes…difícilmente el presidente Lula conseguirá… ampliar significativamente su apoyo popular”.

Se pregunta Soares: ¿cómo puede ser que, luego de su desastroso gobierno, Bolsonaro conserve su gran apoyo popular? ¿y que el bolsonarismo esté movilizado? “Sus adeptos más aguerridos y movilizados son insensibles a argumentos ‘racionales’, indiferentes a evidencias, a informaciones debidamente verificadas y a datos empíricos –a los hechos, en consecuencia. De ahí son frecuentemente tratados como irracionales y negacionistas”. Algunos analistas interpretan que sufren de disonancia cognitiva y estiman que las fakenews constituyen la causa de su negación irracional.

Para Soares, la tesis de la disonancia cognitiva peca de no comprender que no se trata de que les lleguen informaciones o datos confiables , sino de una “radical redefinición colectiva, en proceso…Para esos segmentos, la confianza de una información deriva de su gramaticalidad –o de su adaptabilidad- a sistemas de relatos en parte especulares, tautológicos, mutuamente referidos, de elevada tasa de redundancia…en parte abiertos à absorción de nuevos ingredientes, según filtros que combinan modos de utilizar tecnologías de comunicación y rituales de consagración, horizontales y verticales, participativos y jerarquizados… La gramaticalidad no es una propiedad lógica, abstracta, metafísica (aunque busque radicarse también en esa dimensión, como prueban las elaboraciones de sus ‘intelectuales orgánicos’), sino sobre todo…un ticket simbólico para una admisibilidad de discursos y para el ingreso de individuos a grupos de whatsapp y a la comunidad de los ‘patriotas’”. Aprecian que cada uno y una sea reconocido y valorado.

Más adelante, Soares destaca: “para que todo funcione es preciso que haya un largo y paciente cultivo en el terreno de la comunicación, que incluye desde la formación de grupos hasta la  proliferación de canales liderados por influenciadores bolsonaristas, probando y consolidando múltiples discursos, repasando temas claves con un vocabulario común”. Agrega que no sería suficiente el retorno de las izquierdas a espacios barriales y comunidades ocupados ahora por los militantes neo-pentecostales, sino que es necesario ocupar espacios virtuales con contenidos ciudadanos y democráticos.

El autor señala un “remedio tóxico” que el bolsonarismo ofrece a los brasileños “para curar (su) sentimiento de culpa, que sienten por los deseos inconfesables, y por convivir con el escándalo normalizado. El escándalo de las desigualdades abismales, de la violencia racista, las violaciones de mujeres, de la devastación ambiental meticulosamente ejecutada. La culpa profunda lleva a la postración, la apatía (la depresión se extiende), y cuanto más impotente el sujeto se siente, más se culpa por negarse a ver las abyecciones y reconocerlas como tales, ante su testimonio inerte. El discurso liberal de la meritocracia no basta, es demasiado hipócrita, contrasta con la empiria observable en el día a día. El individualismo convencional brasileño tampoco funciona, porque es permeable a ideas y afectos colectivistas: fraternidad, solidaridad, corresponsabilidad”.

“…el mesías de la revolución destructiva propone una solución obvia, el huevo de Colón: sugiere la metamorfosis de la voz interior que causa culpa –el sentido autocrítico de la moralidad- en acusación pública contra aquellos que tenderían a suscitar empatía y serían objetos de compasión. Bolsonaro interpela a las víctimas y convoca a los culposos a exorcisar hasta la última gota de su sentido de responsabilidad y empatía, pasando a la acción. Es en suma el sentido de su performance: convoca a su militancia a acusar a las víctimas, a los pobres, ultrajados y explotados, y a las mujeres violadas…Mientras las izquierdas vacilaban, con su punitivismo estúpido y demagógico, en reconocer que responsabilidad es una virtud y un deber, de los cuales la culpa constituye un espejo negativo –espejo que enferma e inhibe a su portador, y expele el llamado a la acción– mientras tanto, Bolsonaro se apropiaba de esa problemática central para la organización de la sociabilidad y los afectos, soltando una manada de perros salvajes. La manada feroz es el espíritu humano, instalado en el cuerpo impotente, interpelado por el hambre, la injusticia, el deseo de sentirse libre y la voluntad de poder”.

Luego de caracterizar con mucho interés al bolsonarismo y estudiado su ascenso social y electoral –más amplia y claramente que lo reseñado aquí– el autor señala la dimensión “ontológica”, esa que se restaura junto con tal ascenso distópico, esa dimensión que “es imaginaria aunque vivida como el presupuesto más esencialmente real de la existencia…(la que) define su destino”.

A partir de allí el texto refiere a la “restauración ontológica” del bolsonarismo, que la necesita desesperadamente, reaccionando con miedo, un discurso defensivo tras el surgimiento de nuevas individualidades, particularmente en el feminismo y los movimientos LGBTQIA+, a quienes ataca y odia, como los que más le molestan. Para el bolsonarismo, según Soares, “si el ser es movimiento, si cuerpo, género y sexo no forman una unidad inquebrantable, sancionada por Dios y la naturaleza por siempre jamás, si no hay una esencia substantiva que ancle aquello que cada uno(a) es, en el centro de su ser, orquestando sus afectos fundamentales, si la familia patriarcal no es la única forma sana y sagrada de unión ¿cómo puede cada uno o cada una asegurarse contra esa corriente de incertezas?”
A la vez, “la jerarquia de clases y el racismo estructural también se articularon, históricamente, con los pilares arquetípicos de la familia patriarcal. Somos una sociedad forjada en la esclavitud. No por nada la Casa Grande es la síntesis del poder en Brasil. Por lo tanto, la pirâmide toda parece moverse cuando lo masculino y lo femenino se separan de sus anclajes supuestamente naturales y no solamente cuando los trabajadores se organizan y los movimientos antirracistas se afirman”.
El “terror ontológico”, el pensamiento distópico que acompaña a la reacción bolsonarista movilizada ante los avances de las nuevas individualidades, debe ser señalada, identificada, significada. Y Soares concluye su introducción al libro donde tratará de hacerlo, con una justa impaciencia: “Y parar, de una vez por todas, de descalificar por ‘identitarias’ a las luchas de la nueva ciudadanía’”.       

Esta es una reseña de la Introducción a un gran libro, que esperamos leer pronto. Por el momento, aquí van unos comentarios sobre este prólogo, a cuenta y futura rectificación de los mismos si necesaria.
La temática es por demás importante para la mejor comprensión del conflictuado Brasil y de nuestra América. La insistencia de Soares en la interpretación antropológica, psicológica, política con rasgos económicos del bolsonarismo es elocuente, mirado como algo compuesto, simultáneo, mente y cuerpo, pragmatista. Allí están la restauración ontológica o el discurso, la movilización, la visión de prosperidad, la guerra al diferente e igual, la individualización y la voluntad de ser algo y de poder, que con recursos analíticos puede observarse, provisoriamente, sin descartar su acción práctica integrada.

Ahora bien, a partir de allí, el texto parece tomar una visión diferente. Debe señalarse un matiz diferencial entre la plausibilidad de un ejercicio analítico y la prescripción apriorista de que existen “secciones” o “planos” en las personas y las luchas ciudadanas. Según la última prescripción, la interpretación más transitada tiende a mostrar que hay canales para las luchas, que pueden o no cruzarse entre sí. La teoría de la interseccionalidad de raza, clase, género, sexualidad, etc., iniciada en universidades estadounidenses del oeste (por Kimberlé Crenshaw entre otras, con variaciones), si bien inicia y parte de la clasificación y separación metafísica, convoca luego a intersectar esos caminos, con la fuerte probabilidad de no lograrlo.
La ontología bolsonarista, el deseo de la eternidad e inamovilidad natural autoritaria y esencialista, es muy diferente de la concepción pragmatista libertaria de que una persona reúne en sí misma y ante los otros un color de piel, una ubicación de clase o capa social, una lucha de clases, una elección dinámica de género y actividad sexual que exhibe y practica inseparable y cotidianamente sin ninguna implicancia natural. Según esta última, no habría ninguna esencia en color, género o clase social.
Los movimientos ciudadanos contemporáneos enfrentan un riesgo de debilitamiento político si se presentan de manera esencialista y exclusivamente identitaria, si imaginan a los seres humanos como una intersección de actividades y roles.
Con sus innegables aportes a la libertad y mejor vida humanas de sus históricos y actuales movimientos, ciertos feminismos y comunidades LGBT se ubican en posturas políticas aislacionistas e incomprensibles salvo para sus tribus cercanas. El riesgo mayor no lo constituye el enfrentamiento con el cuerpo militante bolsonarista, probablemente inmune, sino en la lucha política, en la adhesión de mayorías ciudadanas, ¡en la política!║


[1] Escoja su distopía (o piénsela por su revés). El autor es antropólogo, político, pensador y escritor brasileño, ver su sitio www.luizeduardosoares.com, el canal www.youtube.com/@LuizEduardoSoares2020 y https://facebook.com/luizeduardo.soares.716


[2] A tradução francesa de uma primeira versão da primeira parte do presente artigo, sob o título La démocratie brésilienne en ruines, foi publicada na revista AOC media - Analyse Opinion Critique (em 28.06.21).

[3] Calle de la Universidad de San Pablo, en la ciudad homónima (nota de librevista)

[4] Alguns comentaristas falam em tutela militar, o que não seria correto, como alerta Manuel Domingos Neto, com sua notória acuidade (cf. Domingos Neto, Manuel. O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional. Parnaíba: Gabinete de Leitura, 2023). O verdadeiro problema é o fato de que as Forças Armadas são refratárias ao comando político, civil, são impermeáveis ao exercício efetivo da autoridade política do chefe da nação, autoridade que lhe delega a soberania popular, pela mediação do voto -anomalia análoga ocorre com as polícias, conforme sustento em alguns capítulos deste livro. O fenômeno corresponde à formação do que tenho denominado enclave institucional.

[5] Segundo pesquisa do DataFolha, em dezembro de 2023, apenas 7% dos eleitores de Bolsonaro se diziam arrependidos de seu voto.

[6] É curioso observar que se fala muito, no campo das esquerdas, na necessidade de voltar aos bairros, às comunidades, aos espaços cotidianos populares que, abandonados pela militância, teriam sido ocupados pelas igrejas evangélicas. Entretanto, pouco se fala na necessidade de ocupar, com linguagens e conteúdos cidadãos e democráticos, os espaços virtuais, empreendimento que não se confunde com intervenções histriônicas em campanhas eleitorais, e que exige cultivo árduo, duradouro, persistente, diário, permanente.

[7] Edición en castellano Brasil y su doble, Patriarcalismo capitalista, revolución estética libertaria. Editorial Prometeo libros, Buenos Aires, Argentina, 2021.
Ver reseña y comentario del libro en https://www.librevista.com/Brasil-y-su-doble-libro-de-Luiz-Eduardo-Soares-resena-x-Alejandro-Baroni-Marcenaro.html  (nota de librevista)

 

 

Palabras clave:

Luiz Eduardo Soares
Distopia
Feminismo
Bolsonaro
Alejandro Baroni Marcenaro

 

www.librevista.com nº 58, mayo 2024