Publicación del Premio mención librevista de ensayo 2021 Edición bilingüe en portugués y castellano
Atavismo brasileiro
x Leandro Aguiar [1]
À frente caminha o esbelto casal formado por um adulto de pele clara que usa bermudas, óculos escuros, relógio prateado, tênis de corrida e uma versão verde e amarela do uniforme do Flamengo, e uma mulher ruiva, também de óculos de sol, vestindo shorts, tênis e uma camisa como a de seu parceiro, tendo enrolada à mão a correia que prende seu cãozinho da raça maltês. O casal olha para trás, onde dois carrinhos de bebê são conduzidos por uma mulher negra uniformizada de branco. A cena, que repercutiu na mídia, retrata a família Pracownik a caminho das manifestações de 2016 contra Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores (PT), auxiliados por Angélica Lima, empregada doméstica. Em uma carta divulgada na internet, o patrão rechaçou as críticas que recebeu por fazer-se acompanhar da funcionária: “Para os que julgam com base em uma foto, entrego minha esperança que um novo país traga nova visão para nossa gente. Sem preconceitos, extremismos e unitária”. Indagada pelo jornal Extra sobre o que achava da situação política, Angélica opinou: “a Dilma saindo, quem entrar vai continuar roubando. O Brasil é assim. Quem está com dinheiro, vai continuar tudo bem. A gente é que sempre leva a pior”.
“Intervenção militar já”, “Dilma puta!”, “We say no to comunism”, “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”[2] . Entre março de 2015 e abril de 2016, o povo brasileiro vivenciou – parte perplexo, outra parte eufórico – as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, que culminaram, em 17 de abril de 2016, na votação favorável ao seu afastamento no Congresso. É certo que uma cadeia de atores cooperou, nem sempre de forma aberta, para que a deposição saísse bem-sucedida. É o caso de mencionar a atuação do poder judiciário, o apoio das organizações patronais, de parte da mídia e, estes fartamente documentados, os movimentos subterrâneos de proeminentes lideranças políticas. Mas, para além desses atores, a presidente dificilmente teria sido removida do cargo não fossem os massivos, festivos, estridentes protestos de rua que deram o respaldo popular que faltava ao impeachment.
Os líderes políticos e religiosos e os ideólogos que convocaram tais protestos afirmavam agir em defesa de uma entidade abstrata, a “tradicional família brasileira”, composta, é claro, por outro ente ideal, os “cidadãos de bem”.
Mas estes políticos não falavam sozinhos ou tratavam de uma entidade apenas abstrata. Pois em diversos momentos na história brasileira a “família tradicional” se organizou em associações de bairro, grupos religiosos e think tanks, e mais de uma vez saiu às ruas às centenas, aos milhares, às centenas de milhares para fazer valer sua visão de mundo.
Nos protestos pelo impeachment de Dilma, defensores da autoproclamada família tradicional desceram em massa dos condomínios, abandonando a segurança das cercas elétricas, muitos tirando os filhos dos playgrounds para exibi-los em cores pátrias. Mas não só de condomínios: apesar da predominância de ricos e remediados nos protestos, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 expôs que os “valores da família” reverberam nas classes pobres, inclusive entre quem antes apoiou candidatos do PT. O antagonismo entre a elite e o povo, enfim, é insuficiente para explicar o empoderamento do “cidadão de bem” e de suas arcaicas ideias. Para além de disputas ideológicas, o espírito tradicionalista trata-se de um atavismo que precisa ser devassado – também sob as lentes dos imaginários sociais, como sugiro adiante.
Na imprensa, na academia e em discussões quase sempre insólitas, há quem atribua o sucesso da ultradireita no Brasil ao desgaste do reformismo social do PT em meio à crise econômica e aos escândalos de corrupção, conferindo protagonismo à mídia tradicional, que é, segundo este ponto de vista, marcadamente reacionária. Outros acrescentam que as redes virtuais, orientadas por obscuros algorítimos, são as principais culpadas pelo extremismo, ao promover ideários antidemocratas, quando não anti-humanistas ou simplesmente delirantes. Seja como for, a consciência de milhões de pessoas teria sido sequestrada por poderosos grupos mais ou menos ocultos, o que resultou em ações concretas – os protestos antipetistas, o golpe parlamentar, e um sem-número de eventos que deságuam na eleição de Bolsonaro.
Convencido de que o buraco é mais embaixo, esboçarei uma arqueologia do acervo simbólico ancestral de certa ideia de “brasilidade”, que comporta energias e rancores latentes na sociedade brasileira e que, nos protestos pelo impeachment de Dilma, se cristalizaram – de novo – num projeto de poder.
Embora mundial e sistêmico, o despertar da extrema direita possui cores locais no Brasil. Se a galhofa sórdida adotada como estilo “argumentativo” pode ser vista num Trump, ao passo que o ressentimento racista, com acentos francamente paranoicos, deu as bases para o Brexit e para a formação da Liga do Norte na Itália, no Brasil, como alhures, estes traços entraram em simbiose com particularidades socioculturais da formação nacional. Desse encontro das angústias contemporâneas mobilizadas taticamente por ideólogos reacionários com aspectos da “brasilidade” surgiu a ética e a estética do “cidadão de bem”, que se deixou ver nos protestos pelo impeachment de Dilma.
Até o início do século XIX, o Brasil era uma colônia agrícola e de extração mineral voltada aos interesses e desejos europeus. Tratava-se de um quase continente sem uma língua única[3] , um poder central e, principalmente, sem um “povo”. Filhos da diáspora africana, indígenas e aventureiros brancos de várias origens, embora transitando nas mesmas terras, temiam-se e odiavam-se uns aos outros, e sua convivência só se fazia possível pela via da submissão violenta dos dois primeiros aos últimos.
Com a independência, em 1822, esse quadro foi parcial e subitamente alterado – e que ela tenha sido alcançada em parte graças fatores externos a vontade desse “não-povo”, sem as guerras que marcaram a independência dos países vizinhos, é um dado relevante. De todo modo, o império recém-instituído, liderado pelo herdeiro da coroa portuguesa, tinha, por necessidade estratégica, de desenvolver uma narrativa que justificasse, para além de motivações econômicas, a obediência de tão vasto território e de uma população tão variada ao seu mando. Era preciso erguer uma ideia de Brasil.
E era preciso que as elites se enxergassem nessa ideia, sem, contudo, deixar de fazer acenos simbólicos aos dominados. Assim, fomentadas pelo império, pesquisas antropológicas bastante duvidosas apresentaram o mito do encontro das três raças em meio a uma natureza amena e exótica, raças que se complementariam harmonicamente, unindo, sob a batuta da raça branca, o que tinham de melhor e isolando seus piores defeitos.
As origens intelectuais deste mito, segundo nos conta Lilia Schwarz em Sobre o autoritarismo brasileiro, remonta a fundação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). No primeiro concurso público realizado por esta instituição, uma pergunta sem espaço para sutilezas era dirigida aos concorrentes: “Como se deve escrever a história do Brasil?” A intenção, avalia Schwarz, era evidentemente criar uma história “que fosse europeia em seu argumento e imperial na justificativa”.
Muito convenientemente foi um europeu, o alemão Karl von Martius (1774-1868), quem tirou o primeiro lugar no concurso. Em sua resposta, argumentou ele que aos historiadores caberia “mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento das três raças humanas, que nesse país são colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga, e que devem servir-se mutuamente de meio e fim”.[4]
Em seguida o naturalista se valeu de uma metáfora fluvial, onde o povo brasileiro surgia como “um caudaloso rio”, cabendo à raça portuguesa o lugar de “rio branco” que limparia e absorveria “os pequenos confluentes das raças índia e etiópica”.
Sem conflitos, sangue, culpa moral e nenhuma empiria, essa maneira de narrar a história servia perfeitamente aos propósitos do império. Ela “tomava problemas fundamentais do país, como a vigência do sistema escravocrata por todo o território, e os rearranjava de maneira harmoniosa”, analisa Schwarz; ainda, essa história omite qualquer referência às datas, locais e contextos históricos. É que seu propósito era abertamente mítico, e o mito prescinde dos fatos, posto que “precisa fazer sentido para além do momento de sua elaboração. A ausência de uma temporalidade definida lhe confere a imortalidade e a confiança de que o passado fora grandioso, e enseja um futuro promissor. Era o mito dos “tempos de outrora”, que sustentava as certezas do presente e garantia a vigência de uma ordem e hierarquia, como se fossem eternas porque dadas pela natureza”[5] .
Financiado pelo império, coube ao IHGB dar prosseguimento ao projeto de Martius. Nos anos seguintes, o Instituto “tratou de divulgar uma história grandiloquente e patriótica, mesmo que tivesse que sacrificar a pesquisa mais descomprometida para eleger textos que funcionavam como propaganda de Estado”. É verdade que, nesse aspecto, o ambiente acadêmico brasileiro não destoava daquele dos países europeus, onde entre os historiadores, ainda segundo Schwarz, “a preocupação maior se dirigia ao engrandecimento positivo do passado, e não tanto ao cotejo e verificação de documentos”.
O mito do encontro das três raças estava erguido, faltava divulgá-lo. Ao longo do século XIX, escritores que tinham ótimas relações com o imperador Pedro II como Gonçalves de Magalhães, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo ajudaram a moldar no imaginário coletivo esses tipos ideais, o Brasil e o brasileiro, tomados como que por páginas em branco à espera da pena romântica. Que a maioria absoluta da população não pudesse ler seus poemas e romances não era um acaso: o “povo brasileiro” era uma categoria que incluía apenas os brancos e ricos proprietários, e não convinha estendê-la aos negros escravizados e aos indígenas em processo de dizimação.
Muito embora esses dois grupos, e sobretudo os últimos, servissem de modelo para a ideia nacionalista e heroica que buscava se fazer da dominação europeia e do “nascimento” do povo brasileiro. Um exemplo marcante é o livro A confederação dos tamoios, de autoria de Gonçalves de Magalhães, cuja publicação, em 1856, foi patrocinada pelo imperador. Trata-se de um poema épico que narra um episódio real da história nacional, quando um grupo de indígenas se uniu aos franceses, em 1555, para expulsar os colonizadores portugueses do litoral sudeste do país.
Florescia junto desse poema o movimento “indianista”, frutífero na literatura brasileira de meados do século XIX e que apresentava certas constantes: o indígena surge como um herói sobre-humano de rasgos olímpicos, belo e incorruptível; e sempre morre ao final da trama, sacrificando de bom grado a vida para dar lugar a uma nova civilização. Com algumas variantes, é esse o enredo de O Guarani e Iracema, romances de José de Alencar, “o patrono das letras brasileiras”. Em ambos os livros, com uma linguagem que abusa de simbolismos líricos, ingênuas e místicas jovens indígenas se apaixonam por colonizadores loiros em geral bem intencionados, terminando por morrer para defendê-los seja de outros europeus, porém estes malvados, ou do ódio e da vingança dos da sua própria etnia.
Em todo caso, o heroísmo indígena residiria em seu desprendimento à vida e em seu sacrifício para a edificação de algo maior – o Brasil.
O lugar reservado aos negros escravizados no imaginário dos artistas brasileiros no pós-independência é também sintomático do espírito da época. Mesmo os autores românticos considerados dissidentes dentro do pensamento da elite como Bernardo Guimarães e Joaquim Manuel de Macedo, se não advogavam a continuidade da escravidão como José de Alencar, demonstravam, em suas defesas da abolição, as contradições inerentes à sua própria classe.
Guimarães, em A escrava Isaura, livro que um século depois de seu lançamento em 1875 se tornaria uma novela de sucesso na Rede Globo de televisão, busca fazer uma denúncia do escravagismo, porém sua personagem principal, a que dá nome à obra, é uma jovem branca e virginal que, pela crueldade de um fazendeiro, acaba tornada escrava – já a sua antagonista é Rosa, uma negra escravizada, lúbrica e invejosa que diversas vezes conspira contra a mucama branca. Embora crítico aos costumes senhoriais, o sentimentalismo romântico e a própria escolha das raças e características das personagens, alegadas concessões ao gosto da época, denunciam a insensibilidade dessa elite letrada, incapaz de comover-se com os sofrimentos de personagens não-brancas.
Já Vítimas-algozes, coletânea de contos publicada por Joaquim Manuel de Macedo em 1869, apresenta um argumento revoltante, ridículo: os principais prejudicados pela escravidão seriam não os escravizados, mas os seus senhores brancos. Em cada uma das histórias, negros “mal-agradecidos”, criados “como se fossem da família”, voltam-se contra os brancos após serem “doutrinados” por criminosos que os querem aliciar, e então roubam, matam ou seduzem para a devassidão os seus antigos mestres. A abolição, conclui o afamado autor de A moreninha, seria portanto do interesse dos próprios proprietários, numa espécie de autodefesa contra a ira injusta, mobilizada por criminosos interesseiros, de “seus” negros influenciáveis.
Mas também as primeiras fissuras dessa brasilidade “oficial” se expressavam na literatura brasileira do século XIX, cultivando imaginários outros sobre o povo e as instituições nacionais. No satírico Memórias de um sargento de milícias, publicado em 1854 sob a rubrica de “um brasileiro” (cuja a identidade, soube-se depois, era Manuel Antônio de Almeida), somos apresentados a Leonardo, um malandro completo que passa seus dias no Rio de Janeiro entre trambiques, relações ambíguas com a polícia e festas intermináveis. A violência classista, a comédia nas situações mais desgraçadas e a fluidez das relações com o poder que o livro encena prefiguram, oitenta anos antes da publicação do clássico da sociologia Raízes do Brasil, aquilo que Sérgio Buarque de Holanda chamaria de “cordialidade”.
Também a escravidão não passou incólume aos olhos de alguns artistas do século da independência. Patrocinado pelos regentes do império para pintar o dia a dia carioca, o francês Jean-Baptiste Debret, pelo realismo e crueza com que expôs os espancamentos dos escravizados nas praças públicas e a indolência dos senhores carregados em confortáveis redes pelas ruas legou às gerações futuras memórias desconcertantes, inconvenientes para alguns. Há ainda Castro Alves, que sem os subterfúgios de Escrava Isaura tratou da desumanidade do tráfico de africanos – embora a forma de seus versos seja ainda a de lord Byron. Mas o exemplo mais memorável é o de Luiz Gama, nascido em 1830 e filho de uma africana alforriada. Poeta abolicionista, chegou a ser escravizado, alfabetizando-se aos 17 anos. Em 1859 ele denunciava, em Pequenas trovas burlescas, a invisibilidade a que eram relegados os negros no Brasil:
“Quem sou eu? que importa quem sou eu?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra – Ninguém!”
Apesar da importância de registros como estes, é certo que a fábula do encontro das raças foi bem-sucedida em seu propósito de fomentar um imaginário conservador, que justificasse os privilégios das elites e a opressão que ela exercia sobre as classes empobrecidas. Esse mito ressona ainda hoje na argumentação dos que advogam que o Brasil é um país sem racismo – e foi lembrado pelos manifestantes antipetistas de 2015-16, como se vê na autodefesa do senhor Pracownik, citada na abertura deste ensaio.
E não só pelos manifestantes. Ali Kamel, todo-poderoso diretor de jornalismo da Rede Globo, cometeu em 2006 o livro Não somos racistas – uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Escrito na esteira dos projetos do PT que visavam a instituição das cotas raciais e socioeconômicas nas universidades públicas, o livro busca defender-se daqueles que, em sua avaliação, queriam fazer crer que o Brasil é “uma nação onde os brancos oprimem os negros”, quando na verdade, alega, o país “sempre condenou o racismo”, sendo suas expressões “minoritárias em nosso modo de viver”. Nesse seu antagonismo com o movimento negro, Kamel se escora, como costuma fazer o presidente Jair Bolsonaro, no mito da miscigenação racial harmônica inventado pelos antropólogos do império.
Ingrediente indispensável para a ascensão dos reacionários brasileiros ao poder foi o débil desenvolvimento de uma cultura democrática no país, que tem sido freado por aspectos antissociais de sua formação nacional que refluíram nos últimos anos. Pela condição em que germinaram, estes aspectos encerram éticas e estéticas que buscam naturalizar o radicalismo que os distingue, reivindicando como argumento a realidade social brasileira e mitos sobre o povo e a nação.
É ponto pacífico, ao menos entre os historiadores, “que a velha ordem colonial”, nas palavras do literato Antônio Cândido, embora revogada, “continua a acarretar consequências morais, sociais e políticas” que atuam sobre os destinos do país[6]. Publicado em 1933, o livro de estreia de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, tem o propósito de sondar os imaginários e a reafirmação diária dessas consequências. É verdade que a obra contém derrapadas que denunciam a posição de seu autor – Freyre era herdeiro de senhores de terras, e em mais de um momento denota nostalgia dos tempos dos sinhôs e sinhás, mucamas e pretos-velhos. O que não diminui a validade de sua tese central: “A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América”[7] .
A família foi o grande fator colonizador, mas não qualquer uma: Freyre se refere à família branca, católica, chefiada por um pai absolutista e dono de escravos, e que tinha na senzala, além de seu estoque de mão de obra barata, um harém pessoal – e é dessa relação carnal violenta que nasce a miscigenação tão celebrada pelos românticos da alma nacional. Já a mulher branca casava-se jovem, entre os 13 e 15 anos, e seus filhos machos eram celebrados como sucessores do patriarca e iniciados cedo, por meio de “jogos ou brinquedos brutos”, nos prazeres sádicos das senzalas, enquanto as filhas moças viviam “em isolamento, tendo por companhia escravas passivas; sua submissão diante dos homens, a quem se dirigiam com medo, talvez constituíssem estímulos poderosos ao sadismo das sinhás”. Minoritária mas poderosa, essa estrutura modelou parte dos imaginários exaltados pelos antipetistas. Em uma síntese de suas características, Freyre destacou “o patriarcalismo escravocrata e polígamo”, o que ajuda a explicar os recordes, renovados ano a ano, de mulheres mortas por homens no Brasil; o pendor ao ócio e às “sinecuras republicanas”, observável no seio mesmo da atual família presidencial brasileira; e o “sadismo do mando, disfarçado em princípio de autoridade ou defesa da ordem”, o que a violência policial nas periferias do país reitera até a náusea.
A forma como Dilma foi representada nos protestos, tendo ressaltada sua suposta agressividade ou feiura, azedume e intransigência, dialoga com esse imaginário patriarcal. Às mulheres “negou-se tudo que de leve parecesse independência”, escreveu Freyre, “até levantar a voz na presença dos mais velhos”, e não surpreende que parte das críticas a Dilma digam de seu comportamento “intratável” ante lideranças políticas (sempre masculinas), pois insubmisso. “Feia”, quando deveria ser bela, “guerrilheira”, em vez de recatada, Dilma encarna nas manifestações antipetistas a antimulher brasileira.
Mas também o sadismo do mando precisou se ajustar para perdurar. Tendo na escravidão sua forma clássica, mantêm-se vigente, examinou o sociólogo Francisco de Oliveira, na figura do “jeitão, peculiar modo da elite de livrar-se de problemas, ou de falsificá-los”: “Em vez de incorporar os ex-escravos à cidadania, fornecendo-lhes meios de cultivar a terra, os fazendeiros foram importar mão de obra europeia, transformando São Paulo na maior cidade italiana do mundo [...] O jeitão da classe dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do jeitinho do trabalho ambulante, das empregadas domésticas a bombarem do Nordeste para as casas burguesas [...] Assim, o chamado trabalho informal tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro[8] .
O “jeitão” é irmão de um traço dominante na sociedade brasileira: a paternalista conciliação de interesses amplos com aqueles exclusivos da elite – e não deixa de ser didático que os operadores do golpe de 2016 tenham sido os mesmos com quem por mais de dez anos o PT “se conciliou”. Esse traço se alicerça num mito muito repetido para que se fixe no imaginário geral: que o brasileiro é “por natureza” pacífico. Semelhante falácia, a que tantos recorreram para negar a exploração de classe “inventada” por Paulo Freire & cia, presta continência à suposta cordialidade pátria, buscando lustre erudito em leituras retorcidas de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
A cordialidade de que trata Buarque é antes uma característica adaptativa desenvolvida nos séculos da colonização que uma amabilidade inerente ao brasileiro. “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, instituições e ideias, e timbrando em manter tudo em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil”[9] , o homem cordial sobrepôs às leis e códigos impessoais suas relações de conveniência. O lado cordial de que se orgulha o “cidadão de bem” – cuja raiz latina remete ao que é “do coração” – diz desta propensão em transigir regras em nome das relações pessoais, o que tem a ver, no limite, com a corrupção que ele jura odiar.
Intermediado por leituras enviesadas da cordialidade, o sadismo do mando aos poucos se converteu em “jeitão” que “concilia” interesses inconciliáveis – beneficiando os de sempre – em acordos “passivamente” acatados pela população, que, afinal, é “pacífica por natureza”.
O apelo carnavalesco dos protestos contra o PT, a sordidez bolsonarista como método de debate e os memes direitistas na internet dão mostras dessa cordialidade, que fantasia apagar os traumas raciais e sociais da formação nacional sob o ritmo da grotesca e falsificada fraternidade infraclasses, repetindo candidamente tratar-se tudo “só de uma piada” se confrontado com o peso de seus atos.
Já o sr. Pracownik dá a medida do que sua família entende por conciliação: quando tentou se retratar por ter feito acompanhar-se de sua empregada doméstica no protesto, escreveu ele em sua carta “cordialmente” intitulada “Sí Pasarán!: ela é livre para pedir demissão se achar que prefere outra ocupação”. Angélica, como os trabalhadores informais agora convertidos em “empreendedores”, tem a autonomia de se submeter, ou o olho da rua.
É significativa a forma como o ex-presidente Lula foi retratado nos protestos. Em sutil contraste com sua sucessora, apresentada como abjeta e infame, ele surge como alguém cujo poder sedutor é preciso evitar. É certo que é tratado como ladrão – mas um larápio mais esperto do que cruel, que busca conivência, e que aos olhos infantis, talvez mais divirta do que assuste.
O esforço não é incidental, pois mesmo no zênite do antipetismo Lula manteve relevante apoio junto as classes populares, cujo ao menos uma parte tinha de aderir ao impeachment para que o processo respirasse ares “conciliatórios”. Mas com esse estrato, beneficiado pelos programas sociais do PT, o “cidadão de bem” mantêm uma relação mal resolvida, e se quis aliciá-lo, buscou dele guardar a devida distância, agarrando-se a símbolos que ressaltam o que Freud batizou de “narcisismo das pequenas diferenças”.
O ufanismo da camisa oficial da seleção de futebol, a ode virulenta à meritocracia expressa nos tênis Nike e nos óculos Dolce&Gabbana, a canonização do então juiz Moro[10] como paladino do combate à corrupção e das Forças Armadas como repositório do patriotismo se unem na elaboração mítica de uma brasilidade purificada, livre dos invasores que suspenderam sua alegada cordialidade telúrica – os pobres, os negros, os indígenas, as mulheres insubmissas, os não heterossexuais e outros.
Se fosse capaz, a alta classe média brasileira perpetraria sem se misturar os golpes necessários para defender os privilégios que julga condizentes com seus “méritos”. Mas não foi assim em 1964, 2016, e nem em 2018. Darcy Ribeiro, referência para a compreensão da proximidade que parte das classes populares supõe ter com seus dominadores, assim a explicou: “A estratificação social separa e opõe os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. As relações de classe chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram a comunicação humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e maltrata, a explora e a deplora, como se essa fosse uma conduta natural[11] .
Sob o risco permanente, ainda mais durante as crises, de decair para a pobreza, parte da baixa classe média sonha juntar-se aos seus exploradores, o que confirma a caracterização da psicanalista Maria Rita Kehl do ressentido como portador de um “triste afeto”, já que em vez de confrontar as causas sociais de sua inferioridade ele almeja apenas inverter sua posição desvantajosa. Negar-se explorado e aderir à ideologia do opressor é um passo nessa senda – o “cidadão de bem” é muitas coisas, mas não um subversivo da ordem.
É relevante terem as manifestações pelo impeachment, e sua votação na Câmara, ocorrido aos domingos, quando as famílias almoçam juntas e vão à Igreja. E é digna de nota a recepção dos protestos nos jornais dominicais: em 2015, um editorialista da Folha de S.Paulo, diário de maior circulação no país, saudou o “clima pacífico, descontraído e democrático”[12] dos protestos (só no caderno de política o jornal menciona, numa nota, “pessoas que defenderam medidas radicais, como a intervenção militar”).
O “clima descontraído” que encantou a Folha revela a ambição dos protestos: emular um país carnavalesco, sem desmandos classistas e racistas. Não por menos, eles se confundem com as duas grandes festas nacionais, o carnaval e a conquista de uma Copa do Mundo.
O que é significativo, se temos em conta a interpretação do conservador, e nem por isso mal observador, Nelson Rodrigues, para quem as vitórias do time de Pelé foram responsáveis por uma guinada no moral nacional: “Somos um povo que não faz outra coisa senão perder! Afinal, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota cotidiana, a humilhação de cada hora? Eis a caridade que nos faz o escrete: dá ao roto, ao esfarrapado, uma sensação de onipotência. De repente, sentimos que o brasileiro deixava de ser um vira-latas entre os homens e o Brasil um vira-latas entre as nações”[13] .
As alegrias da bola deram a gerações uma sensação que os estadunidenses conhecem bem: a afirmação das “qualidades nacionais” na arena das nações. Amante de tudo quanto é “brasileiro por natureza”, o “cidadão de bem” projeta no time nacional a imagem de um “Brasil que deu certo”, e não por acaso a onda reacionária insurgiu no país após a Copa de 2014 – quando o Brasil, sede do evento, sofreu sua tétrica derrota de 7 a 1 ante os alemães.
Ranzinza e exato, Ernesto Sabato, em uma observação sobre a Argentina que cabe bem ao Brasil, escreveu: “nossa pátria tem o rosto que todos e cada um de nós forjamos em sua carne viva (…) de modo que se todos podemos reivindicar suas virtudes, ninguém que não seja um canalha pode declarar-se sem culpa por seus males”[14] .
Que Bolsonaro desperta os instintos primitivos de parte ora reduzida, porém resiliente dos brasileiros não restam dúvidas. Mas a nação que trouxe ao mundo Ustra e Bolsonaro é também a de Chico Buarque, Elis Regina, Mano Brown e Marielle Franco, e, asco e pessimismo à parte, as disputas entre esses Brasis seguem em curso, sem vencedores e derrotados definitivos, como lembra o uruguaio Pepe Mujica.
Para triunfar – sempre provisoriamente – nesse campo de batalhas que é a imaginação social, e cujas repercussões no mundo material são tremendas, é imprescindível conhecer as artimanhas dos adversários.
Cultivar os “valores do cidadão de bem”, promovê-los na internet, impô-los nas ruas, importá-los ao Congresso e enfim à Presidência foi um percurso que os reacionários brasileiros trilharam com esperteza, pois sabiam que imaginários, estética e política podiam entrar em curto-circuito. Por isso é urgente compreender a “família tradicional” e o “cidadão de bem” a partir destas chaves – pois são elas que têm sido sistematicamente acionadas por ideólogos reacionários em sua cruzada para ditar nossas vidas. ║
www.librevista.com nº 45
Sigue traducción al castellano, revisada por el autor. (Las expresiones entre paréntesis forman parte de la edición buscando una mejor comprensión lectora)
Atavismo brasileño
x Leandro Aguiar[15]
Adelante camina la esbelta pareja formada por un adulto de piel clara que viste shorts, anteojos de sol, reloj plateado, calzado deportivo y una versión verde y amarilla de la camiseta de Flamengo, y una mujer pelirroja, también con gafas de sol, shorts, calzado deportivo y una camiseta como la de su compañero, teniendo arrollada en su mano la correa que sujeta a su perro cachorro de raza maltés. La pareja mira hacia atrás, donde dos cochecitos son conducidos por una mujer negra con uniforme blanco. La escena, que tuvo repercusión mediática, retrata a la familia Pracownik camino de las manifestaciones de 2016 contra Dilma Rousseff y el Partido de los Trabajadores (PT), auxiliada por Angélica Lima, una empleada doméstica. En una carta publicada en internet, el patrón rechazó las críticas que recibió por estar acompañado por la empleada: “A quienes juzgan con base en una foto, les ofrezco mi esperanza de que un nuevo país traerá una nueva visión a nuestra gente. Sin prejuicios, extremismos y unitario”. Preguntada por el diario Extra sobre qué opina de la situación política, Angélica opinó: “Se va Dilma, quien entre, seguirá robando. Brasil es así. Quien tenga dinero, va a continuar todo bien. Es la gente la que siempre lleva lo peor”.
“¡Intervención militar ya!”, “¡Dilma puta!”, “We say no to comunism! (“¡Le decimos no al comunismo!”), “¡Por la memoria del coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra!”[16] Entre marzo de 2015 y abril de 2016, el pueblo brasileño vivió - parte perplejo y otra parte eufórico- las manifestaciones por el impeachment (juicio político) de la presidenta Dilma Rousseff, que culminaron, el 17 de abril de 2016, con el voto a favor de su destitución en el Congreso. Es cierto que una cadena de actores cooperó, no siempre abiertamente, para que la destitución fuera exitosa. Vale la pena mencionar el papel del poder judicial, el apoyo de las organizaciones patronales, de parte de los medios de comunicación y, éstos ampliamente documentados, los movimientos subterráneos de destacados líderes políticos. Pero, aparte de estos actores, la presidenta difícilmente habría sido destituida de su cargo si no fuera por las masivas, festivas y estridentes protestas callejeras que brindaron el apoyo popular del que carecía el impeachment.
Los líderes políticos, religiosos y los ideólogos que convocaron tales protestas afirmaron actuar en defensa de una entidad abstracta, la “familia tradicional brasileña”, compuesta, es claro, por otra entidad ideal, los “ciudadanos de bien”.
Pero estos políticos no hablaban en soledad ni trataban solamente con una entidad abstracta. Porque en diversas épocas de la historia brasileña la “familia tradicional” se ha organizado en asociaciones de vecinos, grupos religiosos y think tanks, y más de una vez ha salido a las calles por cientos, miles, y cientos de miles para hacer valer su visión del mundo.
En las manifestaciones por el impeachment de Dilma, los partidarios de la autoproclamada familia tradicional descendieron en masa de los condominios, abandonando la seguridad de las cercas eléctricas, muchos sacando a sus hijos de los patios de recreo para exhibirlos con los colores de la patria. Pero no solo de condominios: a pesar del predominio de los ricos y acomodados en las protestas, la elección de Jair Bolsonaro en 2018 expuso que los “valores de familia” reverberan en las clases pobres, incluidas aquellas que anteriormente apoyaban a candidatos del PT. El antagonismo entre la élite y el pueblo, finalmente, es insuficiente para explicar el empoderamiento del “ciudadano de bien” y sus ideas arcaicas. Además de las disputas ideológicas, el espíritu tradicionalista es un atavismo que necesita ser explorado, también bajo la lente de los imaginarios sociales, como sugiero a continuación.
En la prensa, en la academia y en discusiones casi siempre insólitas, hay quienes atribuyen el éxito de la ultraderecha en Brasil al desgaste del reformismo social del PT en medio de la crisis económica y los escándalos de corrupción, confiriendo un protagonismo a los medios tradicionales que es, según este punto de vista, marcadamente reaccionario. Otros agregan que las redes sociales, guiadas por algoritmos oscuros, son las principales culpables del extremismo, en la promoción de ideas antidemocráticas, cuando no antihumanistas o simplemente delirantes. En cualquier caso, la conciencia de millones de personas habría sido secuestrada por grupos poderosos más o menos ocultos, lo que derivó en acciones concretas: las protestas contra el PT, el golpe parlamentario e innumerables hechos que llevaron a la elección de Bolsonaro.
Convencido de que el buraco (agujero) es más profundo, esbozaré una arqueología del acervo simbólico ancestral de una cierta idea de "brasilidad", que contiene energías y resentimientos latentes en la sociedad brasileña y que, en las protestas por el juicio político de Dilma, cristalizó - nuevamente - en un proyecto de poder.
Aunque global y sistémico, el despertar de la extrema derecha tiene colores locales en Brasil. Si el divertimento sórdido adoptado como estilo "argumentativo" se puede ver en un Trump, mientras que el resentimiento racista, con acentos francamente paranoicos, sentó las bases para el Brexit y para la formación de la Liga del Norte en Italia, en Brasil, como en otros lugares, estos rasgos entraron en simbiosis con las particularidades socioculturales de la formación nacional. De este encuentro de angustias contemporáneas movilizadas tácticamente por ideólogos reaccionarios con aspectos de “brasilidad” emergió la ética y la estética del “ciudadano de bien”, que se dejó ver en las protestas por el impeachment de Dilma.
Hasta principios del siglo XIX, Brasil fue una colonia agrícola y de extracción de minerales centrada en los intereses y deseos europeos. Era un casi continente sin una lengua única[17] , un poder central y, sobre todo, sin un “pueblo”. Hijos de la diáspora africana, indígenas y aventureros blancos de diversos orígenes, aunque transitando por las mismas tierras, se temían y odiaban unos a otros, y su convivencia solo era posible mediante la sumisión violenta de los dos primeros a los últimos.
Con la independencia en 1822, este panorama fue parcial y súbitamente alterado, y que haya sido alcanzado en parte gracias a factores externos y la voluntad de este “no pueblo”, sin las guerras que marcaron la independencia de los países vecinos, es un dato relevante. De todos modos, el imperio recién establecido, liderado por el heredero de la corona portuguesa, tenía que, por necesidad estratégica, desarrollar una narrativa que justificase, más allá de motivaciones económicas, la obediencia de un territorio tan vasto y de una población tan variada a su mando. Era necesario plantear una idea de Brasil.
Y era necesario que las élites se identificaran con esta idea, sin dejar de hacer gestos simbólicos a los dominados. Así, fomentadas por el imperio, investigaciones antropológicas muy dudosas presentaron el mito del encuentro de las tres razas en medio de una naturaleza apacible y exótica, razas que se complementarían armoniosamente, uniendo, bajo la batuta de la raza blanca, lo que tenían de mejor y aislaban sus peores defectos.
Los orígenes intelectuales de este mito, como nos cuenta Lilia Schwarz en Sobre o autoritarismo brasileiro (Sobre el autoritarismo brasileiro), se remontan a la fundación en 1838, del Instituto Histórico y Geográfico Brasileiro (IHGB). En el primer concurso público realizado por esta institución, se dirigió a los competidores una pregunta sin margen de sutilezas: “¿Cómo se debe escribir la historia de Brasil?”. La intención, reconoce Schwarz, era evidentemente crear una historia "que fuera europea en su argumento e imperial en su justificación".
Muy convenientemente fue un europeo, el alemán Karl von Martius (1774-1868), quien obtuvo el primer lugar del concurso. En su respuesta, argumentó que correspondería a los historiadores “mostrar cómo en el sucesivo desarrollo de Brasil se establecen las condiciones para el perfeccionamiento de las tres razas humanas, que en este país se colocan una al lado de la otra, de una manera desconocida en la historia antigua, y que deben servir mutuamente como medio y fin”[18] . Luego, el naturalista utilizó una metáfora fluvial, donde el pueblo brasileño se presentaba como “un río caudaloso”, con la raza portuguesa tomando el lugar del “río blanco” que limpiaría y absorbería “las pequeñas confluencias de las razas india y etíope”.
Sin conflictos, sangre, culpa moral y ninguna empiria, esta forma de narrar la historia servía perfectamente a los propósitos del imperio. Ella “tomaba problemas fundamentales del país, como la existencia del sistema esclavista en todo el territorio, y los reordenaba de manera armoniosa”, analiza Schwarz; además, esta historia omite cualquier referencia a fechas, lugares y contextos históricos. Su propósito era abiertamente mítico y el mito prescinde de los hechos, puesto que: “necesita tener sentido más allá del momento de su elaboración. La ausencia de una temporalidad definida le da inmortalidad y la confianza de que el pasado fue grande y que da lugar a un futuro prometedor. Era el mito de los “tiempos de otrora”, que sustentaba las certezas del presente y garantizaba la vigencia de un orden y jerarquía, como si fueran eternos y dados por la naturaleza”[19] .
Financiado por el imperio, le tocó al IHGB continuar con el proyecto de Martius. En los años siguientes, el Instituto “trató de divulgar una historia grandilocuente y patriótica, aunque tuvo que sacrificar la investigación menos comprometida para elegir textos que funcionaban como propaganda de Estado”. Es cierto que, en este sentido, el ambiente académico brasileño no se diferenciaba del de los países europeos, donde entre los historiadores, siempre según Schwarz, “la mayor preocupación se dirigía al engrandecimiento positivo del pasado, y no tanto al cotejo y verificación de documentos”.
El mito del encuentro de las tres razas estaba delineado, faltaba que fuera publicitado. A lo largo del siglo XIX, escritores que tuvieron excelentes relaciones con el emperador Pedro II, como Gonçalves de Magalhães, José de Alencar y Joaquim Manuel de Macedo, ayudaron a moldear en el imaginario colectivo a estos tipos ideales, el Brasil y el brasileño, tomados por páginas en blanco esperando la romántica pluma. Que la mayoría absoluta de la población no pudiera leer sus poemas y novelas no fue casualidad: el “pueblo brasileño” era una categoría que incluía solo a blancos y ricos propietarios, y no convenía extenderla a negros e indígenas esclavizados en proceso de diezmado.
Muy a pesar de esos dos grupos, y sobre todo del último, sirvieron de modelo a la idea nacionalista y heroica que pretendía hacerse de la dominación europea y el “nacimiento” del pueblo brasileño. Un ejemplo llamativo es el libro A confederação dos tamoios, (La confederación de los tamoios) de Gonçalves de Magalhães, cuya publicación, en 1856, fue patrocinada por el emperador. Se trata de un poema épico que narra un episodio real de la historia nacional, cuando un grupo de indígenas se unió a los franceses en 1555 para expulsar a los colonos portugueses de la costa sureste del país.
Junto a este poema, floreció el movimiento “indigenista”, fecundo en la literatura brasileña de mediados del siglo XIX y que presentaba ciertas constantes: el indígena emerge como un héroe sobrehumano de rasgos olímpicos, bello e incorruptible; y siempre muere al final de la trama, sacrificando voluntariamente su vida para dar paso a una nueva civilización. Con algunas variaciones, esta es la trama de O Guarani e Iracema, novelas de José de Alencar, “el patrono de las letras brasileñas”. En ambos libros, con un lenguaje que abusa de simbolismos líricos, indígenas jóvenes y místicas se enamoran de colonizadores rubios en general bien intencionados, y acaban muriendo por defenderlos ya sea de otros europeos, éstos sí malvados, o por odio y venganza de los de su propia etnia.
En cualquier caso, el heroísmo indígena residiría en su desprendimiento de la vida y su sacrificio para construir algo más grande: el Brasil.
El lugar reservado para los negros esclavizados en la imaginación de los artistas brasileños en la pos-independencia es también sintomático del espíritu de época. Incluso autores románticos considerados disidentes dentro del pensamiento de élite como Bernardo Guimarães y Joaquim Manuel de Macedo, si no abogaban por la continuación de la esclavitud como José de Alencar, demostraban, en su defensa de la abolición, las contradicciones inherentes a su propia clase.
Guimarães, en A escrava Isaura (La esclava Isaura) libro que un siglo después de su estreno en 1875 se convertiría en una exitosa telenovela de la Rede Globo, busca hacer una denuncia de la esclavitud, pero su personaje principal, el que da nombre a la obra, es una joven blanca y virginal que por la crueldad de un señor de tierras acaba siendo esclava - su antagonista es Rosa, una negra esclavizada, libidinosa y envidiosa que conspira varias veces contra la mucama blanca. Aunque crítico con las costumbres señoriales, el sentimentalismo romántico y la propia elección de las razas y características de los personajes, supuestas concesiones al gusto de la época, denuncian la insensibilidad de esta élite ilustrada, incapaz de dejarse conmover por los sufrimientos de personajes no blancos.
En Vítimas-algozes, (Víctimas-verdugos), una colección de cuentos publicados por Joaquim Manuel de Macedo en 1869, se presenta un argumento repugnante y ridículo: las principales víctimas de la esclavitud no serían los esclavizados, sino sus amos blancos. En cada una de las historias, negros "mal-agradecidos", criados "como si fueran de la familia", se vuelven contra los blancos después de ser "adoctrinados" por criminales que quieren atraerlos, y entonces roban, matan o seducen para la devastación de sus antiguos amos. La abolición, concluye el célebre autor de A Moreninha (La Morenita) sería por tanto en interés de los propios propietarios, en una especie de autodefensa contra la ira injusta, movilizada por criminales egoístas, de “sus” negros influenciables.
Pero las primeras grietas de esta brasilidad “oficial” también se expresaron en la literatura brasileña del siglo XIX, cultivando otros imaginarios sobre las personas y las instituciones nacionales. En la sátira Memórias de un sargento de milícias publicada en 1854 bajo la firma de “un brasileño” (cuya identidad, se supo más tarde, era Manuel Antônio de Almeida), se nos presenta a Leonardo, un malandro completo que pasa sus días en Río de Janeiro en medio de vagabundos, relaciones ambiguas con la policía y fiestas interminables. Violencia clasista, comedia de las situaciones más desgraciadas y la fluidez de las relaciones con el poder que el libro escenifica, prefiguran, ochenta años antes de la publicación del clásico de sociología Raízes do Brasil, lo que Sérgio Buarque de Holanda llamaría “cordialidad”.
La esclavitud tampoco pasó desapercibida a los ojos de algunos artistas del siglo de la independencia. Patrocinado por los regentes del imperio para pintar la vida cotidiana carioca, el francés Jean-Baptiste Debret, por el realismo y crudeza con que expuso las palizas de los esclavos en las plazas públicas y la indolencia de señores transportados en cómodas hamacas por las calles, legó memorias desconcertantes a las generaciones futuras, inconvenientes para algunos. También está Castro Alves, quien, sin los subterfugios de A Escrava Isaura, abordó la inhumanidad del tráfico de africanos, aunque la forma de sus versos siguiera siendo la de lord Byron. Pero el ejemplo más memorable es el de Luiz Gama, nacido en 1830 e hijo de una africana liberada. Poeta abolicionista, llegó a ser esclavizado, alfabetizándose a la edad de 17 años. En 1859 denunció, en Pequenas trovas burlescas, la invisibilidad a la que estaban relegados los negros en Brasil:
“¿Quién soy yo? ¿qué importa quién soy yo?
Soy un trovador proscrito,
Que traigo en mi frente escrita
Esta palabra - ¡Nadie!”
A pesar de la importancia de registros como estos, es cierto que la fábula del encuentro de razas tuvo éxito en su propósito de fomentar una imaginación conservadora, que justificara los privilegios de las élites y la opresión que ejercían sobre las clases empobrecidas. Este mito aún resuena hoy en los argumentos de quienes defienden que Brasil es un país sin racismo, y fue recordado por los manifestantes anti-petistas de 2015-16, como se ve en la autodefensa de Pracownik, citada al comienzo de este ensayo.
Y no solo por los manifestantes. Ali Kamel, el todopoderoso director de periodismo de la Rede Globo, sostuvo en 2006 en el libro Não somos racistas - uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor (No somos racistas – una respuesta a quienes quieren transformarnos en una nación bicolor). Escrito a raíz de los proyectos del PT destinados a establecer cuotas raciales y socioeconómicas en las universidades públicas, el libro busca defenderse de quienes, en su opinión, querían hacer creer a la gente que Brasil es "una nación donde los blancos oprimen a los negros", cuando de hecho, afirma, el país "siempre ha condenado el racismo", siendo esas expresiones "minoritarias en nuestro estilo de vida". En su antagonismo con el movimiento negro, Kamel se basa, como suele hacer el presidente Jair Bolsonaro, en el mito del mestizaje racial armónico inventado por los antropólogos del imperio.
Un ingrediente indispensable para el ascenso de los reaccionarios brasileños al poder fue el débil desarrollo de una cultura democrática en el país, que se ha visto frenada por aspectos antisociales de su formación nacional que han refluído en los últimos años. Por la condición en que germinaron, estos aspectos encierran éticas y estéticas que buscan naturalizar el radicalismo que los distingue, reivindicando como argumento la realidad social brasileña y los mitos sobre el pueblo y la nación.
Es un punto de acuerdo, al menos entre los historiadores, que “el viejo orden colonial”, en palabras del letrado Antônio Cândido, aunque revocado, “continúa acarreando consecuencias morales, sociales y políticas” que actúan sobre los destinos del país [20] . Publicado en 1933, el primer libro de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala (Casa principal & Casa de esclavos), tiene el propósito de sondear los imaginarios y la reafirmación diaria de estas consecuencias. Es cierto que la obra contiene resbalones que denuncian la posición de su autor - Freyre fue heredero de terratenientes, y en más de un momento muestra nostalgia por los tiempos de los señores y señoritas, criadas y pretos-velhos (negros viejos) Lo cual no disminuye la validez de su tesis central:
“La familia, no el individuo, ni el Estado o cualquier empresa comercial, es el gran factor colonizador en Brasil desde el siglo XVI, el capital que desbroza el suelo, instala las granjas, compra esclavos, bueyes, herramientas, a força social que se desdobra en política (la fuerza social que se despliega en política), constituyéndose en la aristocracia colonial más poderosa de América”[21] .
La familia fue el gran factor colonizador, pero no cualquiera: Freyre se refiere a la familia blanca, católica, encabezada por un padre absolutista y propietario de esclavos, y que tenía en la casa de esclavos (senzala), además de una reserva de mano de obra barata, un harén personal - y de esta violenta relación carnal es que nace el mestizaje tan celebrado por los románticos del alma nacional. La mujer blanca, en cambio, se casaba joven, entre sus 13 y 15 años, y sus hijos varones eran celebrados como sucesores del patriarca e iniciados temprano, a través de "juegos o juguetes burdos", en placeres sádicos en casas de esclavos, mientras que las hijas vivían “en aislamiento, con esclavas pasivas por compañía; su sumisión a los hombres, a quienes se dirigían con miedo, tal vez pudo haber sido un poderoso estímulo para el sadismo de las señoritas”. Minoritaria pero poderosa, esta estructura modeló parte de los imaginarios exaltados por los antipetistas. En una síntesis de sus características, Freyre destacó “el patriarcado eslavocrático y polígamo”, que ayuda a explicar los registros, renovados año tras año, de mujeres asesinadas por hombres en Brasil; la inclinación al ocio y las “sinecuras republicanas”, observable en el seno mismo de la actual familia presidencial brasileña; y el “sadismo del mando, disfrazado en principio de autoridad o de defensa del orden”, que la violencia policial en las periferias del país reitera hasta la náusea.
La forma en que Dilma fue representada en las protestas, habiendo resaltado su supuesta agresividad o fealdad, amargura e intransigencia, dialoga con ese imaginario patriarcal. A las mujeres "se les negó todo lo que levemente pareciera independencia", escribió Freyre, "hasta levantar la voz en presencia de sus mayores", y no sorprende que algunas de las críticas a Dilma hablen de su comportamiento "intratable" hacia los líderes políticos (siempre masculinos) e insumiso. “Fea”, cuando debería haber sido bella, “guerrillera”, en lugar de recatada, Dilma encarna en las manifestaciones antipetistas a la antimujer brasileña.
Pero el sadismo del mando también tuvo que adaptarse para durar. Manifestando su formato clásico en la esclavitud, se mantiene vigente, examinó el sociólogo Francisco de Oliveira, en la figura del “jeitão, (algo así como una ‘solución alternativa’, o ‘buscarle la vuelta’, expresión intraducible para otros idiomas) la peculiar manera de la élite de deshacerse de los problemas, o de falsificarlos”: “En lugar de incorporar a los antiguos esclavos a la ciudadanía, dándoles los medios para cultivar la tierra, los agricultores importaron mano de obra europea, transformando São Paulo en la ciudad italiana más grande del mundo [...] El jeitão de la clase dominante obligó a los dominados a arreglarse con el jeitinho del trabajo ambulante, a las trabajadoras domésticas a emigrar (bombarem) desde el Nordeste a las casas burguesas [...] Así, el llamado trabajo informal se volvió estructural en el capitalismo brasileño.[22]
El “jeitão” es hermano de un rasgo dominante en la sociedad brasileña: la conciliación paternalista de intereses amplios con aquellos exclusivos de la élite - y no deja de ser didáctico que los operadores del golpe de 2016 hayan sido los mismos con quienes durante más de diez años el PT “concilió”. Este rasgo se alimenta de un mito que se repite a menudo para ser fijado en el imaginario general: que el brasileño es “por naturaleza” pacífico. Semejante falacia, a la que tantos recurrieron para negar la exploración de clase "inventada" por Paulo Freire & Cia, presta sustento a la supuesta cordialidad patria, buscando un brillo erudito en lecturas retorcidas de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.
La cordialidad de que trata Buarque es más una característica adaptativa desarrollada durante los siglos de colonización que una amabilidad inherente al brasileño. “Trayendo de países lejanos nuestras formas de convivencia, instituciones e ideas, e insistiendo en mantener todo en un ambiente muchas veces desfavorable y hostil” [23] , el hombre cordial sobrepone a las leyes y códigos impersonales sus relaciones de conveniencia. El lado cordial del que se enorgullece el “ciudadano de bien” - cuya raíz latina remite a lo que es “del corazón” - habla de esta propensión a transigir reglas en nombre de las relaciones personales, que tiene que ver, en el límite, con la corrupción que jura odiar.
Intermediado por lecturas sesgadas de cordialidad, el sadismo del mando se transformó paulatinamente en “jeitão” que “concilia” intereses inconciliables – beneficiando a los de siempre - en acuerdos acatados "pasivamente" por la población, que, al final, es “pacífica por naturaleza”.
El atractivo carnavalesco de las protestas contra el PT, la sordidez bolsonarista como método de debate y los memes derechistas en internet dan muestra de esa cordialidad, que fantasea con borrar los traumas raciales y sociales de la formación nacional al ritmo de la grotesca y falsa fraternidad de clases, repitiendo cándidamente que todo se trata "solo de una broma" si se ven enfrentados al peso de sus actos.
Ya el Sr. Pracownik da la medida de lo que su familia entiende por conciliación: cuando intentó retractarse por haber hecho que su empleada doméstica lo acompañara a la protesta, escribió en su carta “cordialmente” titulada “¡Sí Pasarán!: ella es libre de pedir el despido si cree que prefiere otra ocupación". Angélica, como los trabajadores informales ahora convertidos en “emprendedores”, tiene la autonomía para someterse, o bien irse a la calle.
Es significativa la forma como el expresidente Lula fue retratado en las manifestaciones. En sutil contraste con su sucesora, presentada como abyecto e infame, emerge como alguien cuyo poder seductor debe evitarse. Es cierto que se le trata como a un ladrón, pero un bandido más experto que cruel, que busca connivencia, y que, a ojos de un niño, tal vez más divierta que asuste.
El esfuerzo no es incidental, ya que incluso en el cenit del antipetismo Lula mantuvo un apoyo relevante en las clases populares, al menos una parte de las cuales tuvo que adherirse al impeachment para que el proceso pudiera respirar aires “conciliadores”. Pero con ese estrato, beneficiado por los programas sociales del PT, el “ciudadano de bien” mantiene una relación irresuelta, y si quiso atraerlo, trató de mantener debida distancia, apelando a símbolos que resaltaban lo que Freud bautizó el “narcisismo de las pequeñas diferencias”.
El orgullo de la camiseta oficial del equipo de fútbol, la virulenta oda a la meritocracia expresada en el calzado Nike y los lentes Dolce&Gabbana, la canonización del entonces juez Moro[24] como paladín de la lucha contra la corrupción y a las Fuerzas Armadas como depositarias del patriotismo confluyen en la elaboración mítica de una brasilidad purificada, libre de los invasores que suspendieron su alegada cordialidad telúrica - los pobres, los negros, los indígenas, las mujeres insumisas, los no heterosexuales y otros.
Si fuera capaz, la clase media alta brasileña perpretaría sin mezclarse los golpes necesarios para defender los privilegios que estima acorde con sus “méritos”. Pero no fue así en 1964, 2016, ni en 2018. Darcy Ribeiro, referente para comprender la cercanía que parte de las clases populares supo tener con sus dominadores, lo explicó así: “La estratificación social separa y enfrenta a los brasileños ricos y acomodados de los pobres, y todos ellos de los miserables, más de lo que corresponde habitualmente a esos antagonismos. Las relaciones de clase llegan a ser tan insuperables que obliteran la comunicación humana entre la masa del pueblo y la minoría privilegiada, que la ve y la ignora, la trata y la maltrata, la explota y la deplora, como si ella fuera una conducta natural”[25] .
Bajo el riesgo permanente, más todavía durante las crisis, de caer en la pobreza, parte de la clase media baja sueña con unirse a sus explotadores, lo que confirma la caracterización de la psicoanalista Maria Rita Kehl del resentido como portador de un “afecto triste”, ya que en lugar de enfrentarse las causas sociales de su inferioridad sólo anhela revertir su posición desventajosa. Negarse como explotado y adherirse a la ideología del opresor es un paso en este camino: el “ciudadano de bien” es muchas cosas, pero no un subversivo del orden.
Es relevante que las manifestaciones por el impeachment, y su votación en la Cámara, ocurrieron los domingos, cuando las familias almuerzan juntas y van a la Iglesia. Y es digna nota la recepción de las protestas en los periódicos dominicales: en 2015, un editorialista de Folha de S.Paulo, el diario de mayor circulación del país, saludó el “ambiente pacífico, decontraído y democrático”[26] de las protestas (solo en el suplemento de política el diario menciona, en nota, “personas que defendieron medidas radicales, como la intervención militar”).
El “clima decontraído” que encantó a Folha revela la ambición de las protestas: emular un país carnavalero, sin desmanes clasistas o racistas. Nada menos, se confunden con las dos grandes fiestas patrias, el carnaval y la conquista de una Copa del mundo.
Lo que es significativo, si tenemos en cuenta la interpretación del conservador, y no por eso mal observador, Nelson Rodrigues, para quien las victorias de la selección de Pelé fueron responsables de un cambio en la moral nacional: “¡Somos un pueblo que no hace más que perder! Después de todo, ¿qué es el subdesarrollo sino la derrota diaria, la humillación de cada hora? Aquí está la caridad que nos hace el escrete (de scratch, o selección de fútbol): da al roto, a los andrajosos, un sentimiento de omnipotencia. De repente, sentimos que el brasileño dejaba de ser un vira-latas (pichi) entre los hombres y Brasil un vira-latas entre las naciones”[27] .
Los placeres de la pelota han dado a generaciones una sensación que los estadounidenses conocen bien: la afirmación de las “cualidades nacionales” en la arena de las naciones. Amante de todo lo que es “brasileño por naturaleza”, el “ciudadano de bien” proyecta en la selección la imagen de un “Brasil que funcionó”, y no es casualidad que la ola reaccionaria surgiera en el país tras el Campeonato mundial de 2014 - cuando Brasil, anfitrión del evento, sufrió una terrible derrota por 7-1 ante los alemanes.
Hosco y exacto, Ernesto Sabato, en una observación sobre la Argentina que le cabe bien a Brasil, escribió: “nuestra patria tiene el rostro que todos y cada uno de nosotros nos forjamos en su carne viva (…) de modo que si todos podamos reivindicar sus virtudes, nadie que no sea un canalla puede declararse sin culpa de sus males”.[28]
Que Bolsonaro despierta los instintos primitivos de parte - ahora reducida - pero resistente de los brasileños, no hay duda. Pero la nación que trajo al mundo a Ustra y Bolsonaro también es la de Chico Buarque, Elis Regina, Mano Brown y Marielle Franco, y, asco y pesimismo aparte, las disputas entre esos Brasiles continúan, sin ganadores y perdedores definitivos como recuerda el uruguayo Pepe Mujica.
Para triunfar -siempre provisionalmente- en este campo de batalla que es la imaginación social, y cuyas repercusiones en el mundo material son tremendas, es imprescindible conocer las artimañas de los adversarios.
Cultivar los “valores del ciudadano de bien”, promoverlos en internet, imponerlos en las calles, importarlos al Congreso y finalmente a la Presidencia fue un camino que los reaccionarios brasileños recorrieron con astucia, pues sabían que imaginarios, estéticas y política podría sufrir un cortocircuito. Por eso es urgente comprender la “familia tradicional” y el “ciudadano de bien” desde estas claves, ya que han sido utilizadas sistemáticamente por ideólogos reaccionarios en su cruzada para dictar nuestras vidas. ║
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[1] Brasileiro, 32 anos, é jornalista e faz doutorado em Comunicação na Universidade de Brasília, onde mora. Como repórter, colaborou como os jornais Folha de São Paulo, O Tempo, Brasil de Fato, Revista Piauí y BBC Brasil. Leandro disse: (escrevendo este ensaio) “foi uma grande motivação para continuar fazendo o que gosto: escrever sem me preocupar com a opinião de um chefe”.
[2] Chefe das Operações de Defesa Interna durante a ditadura militar no Brasil (1964-84), responsável por torturar, estuprar assassinar dissidentes. A aspa em sua homenagem foi proferida pelo então deputado Bolsonaro na votação pela abertura do impeachment de Dilma.
[3] Até meados do séc. XIX, o tupi-guarani rivalizava com o português como língua mais falada no território brasileiro
[4] Cia. das Letras, S. Paulo, 2019, p13
[5] Ibidem, p15
[6] Do prefácio de Raízes do Brasil, de S. Buarque de Holanda, Cia. das Letras, S Paulo, 1995
[7] edit Global, S Paulo, 2013, p40
[8] https://cutt.ly/Ud1dMnz 08/21
[9] Cia das Letras, São Paulo, 1995 p.31
[10] Em março de 2021, o ex-juiz da operação Lava Jato foi declarado parcial na sua condução dos processos contra Lula, o que levou a anulação dos mesmos.
[11] Cia das Letras, São Paulo, 1995 p24
[13] A patria de chuteiras, Cia das Letras, São Paulo 2013, p41
[14] El escritor y sus fantasmas, Emecé, BAires 1976, p123
[15] Brasileño, 32 años, es periodista y está cursando el doctorado en Comunicación en la Universidad de Brasilia, donde vive. Como reportero, colaboró con los periódicos Folha de S.Paulo, O Tempo, Brasil de Fato, Revista Piauí y BBC Brasil. Dijo Leandro: (escribir este ensayo) “fue una gran motivación para seguir haciendo lo que me gusta: escribir sin preocuparme por la opinión de un jefe”.
[16] Jefe de Operaciones de Defensa Interna durante la dictadura militar en Brasil (1964-84), responsable de torturar, violar y asesinar a disidentes. La expresión entre comillas en su honor fue pronunciada por el entonces diputado Bolsonaro en la votación de apertura para el impeachment de Dilma.
[17] Hasta mediados del siglo XIX, el tupi-guaraní disputaba con el portugués el lugar de la lengua más hablada en el territorio brasileño.
[18] Cia. das Letras, S Paulo, 2019, p13
[19] Cia. das Letras, S Paulo, 2019, p15
[20] Del Prefacio de Raízes do Brasil, de S. Buarque de Holanda, Cia. das Letras, S Paulo, 1995
[21] Freyre, Global, S Paulo, 2013, p 40
[22] https://cutt.ly/Ud1dMnz 08/21
[23] Cia das Letras, São Paulo, 1995, p 31
[24] En marzo de 2021, el exjuez de operación Lava Jato fue declarado parcial por su conducción de los procesos contra Lula, lo que llevó a la anulación de los mismos.
[25] O povo brasileiro, Cia das Letras, S Paulo, 1995 p 24
[27] A patria de chuteiras, (El país de los zapatos de fútbol) Cia das Letras, S Paulo, 2013, p 41
[28] El escritor y sus fantasmas, Emecé, BAires, 1976, p 123